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Em ‘Retratos Falantes’, grupo Tapa revela flashes da solidão humana

Peça com texto do o inglês Alan Bennett é outro acerto na trajetória do grupo

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Por Redação
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No início do filme M, O Vampiro de Dusseldorf, de Fritz Lang, uma figura masculina, assobiando, aproxima-se de uma garotinha. O local e a intensidade da fotografia prenunciam o que irá acontecer. Realizado em 1931, com Peter Lorre, o filme é um clássico conhecido. Meio século mais tarde, o inglês Alan Bennett retorna não exatamente ao tema, mas às circunstâncias de vida fora da sanidade ou alegria.

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Escreveu monólogos para a televisão e vários deles chegaram ao palco como Retratos Falantes, que o grupo Tapa transformou em exercício cênico que confirma Brian Penido Ross e Zécarlos Machado como intérpretes superiores.

São dois solos executados com a sutileza que iluminam a arte e o ofício de representar. Histórias soturnas, mas que não chegam a afugentar o público. São acontecimentos cotidianos envoltos no mistério entre Freud e Kafka. Sexo irrealizado e caso de polícia e psicanálise são os pontos centrais dos enredos. Outro é a velhice e seu cortejo de misérias. Flashes da contemporaneidade que está no vizinho ao lado ou batendo à porta de qualquer um.

No primeiro movimento deste dueto da solidão humana, um solteiro maduro cuida da mãe, em avançada senilidade, que se compraz em insinuar a homossexualidade dissimulada do filho. No segundo, o jardineiro de um parque revela submissão que parece ser penitência ou luta silenciosa contra algum obscuro mal secreto.

O texto, ou tradução, não explicita a geografia onde transcorrem essas vidas cinza e anônimas, mas paira no ar que estamos na Europa dos invernos, do individualismo frio, de terras onde as pessoas não se tocam. É no fundo de um lado do Reino Unido não tão grandioso (quem entrou em um pub na periferia de Londres sabe a distância entre as casinhas tediosamente iguais e úmidas dos subúrbios e as cerimônias de Buckingham). Mas a mesma vida pequena transcorre em minúsculos apartamentos paulistanos.

Alan Bennett nasceu em 1934, logo, teve sua adolescência no pós-guerra do racionamento do governo Clement Attlee e chegou ao estado neoliberal duro construído por Margaret Thatcher. Parecem histórias alheias, mas a economia é um processo global a criar por todo lado tipos opostos entre o dinheiro fácil e os dependentes de atendimentos públicos.

Além da questão financeira, há a psicologia, os estados de alma, as neuroses, o fracasso. É este recanto da existência que o escritor descreve. Não fica claro se é só humor negro ou audaciosa autoironia colocar uma senhora de 72 anos como anciã quase demente. Nem todos conseguem o atletismo de um Rolling Stone, mas o fato é que Mick Jagger tem 70 anos (Bennett, 79).

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Esta dramaturgia de estrutura radiofônica ou closes de televisão requer pouco cenário e efeitos técnicos. Precisa de bons atores e eles estão presentes. O diretor Eduardo Tolentino acertou no uso de um espaço semivazio, onde uma iluminação mais elaborada daria mais força a esses retratos em preto e branco. Acerta plenamente no clima geral do espetáculo ao se manter em sintonia com o escritor e evitar o melodrama. Nesta linha, Brian e Zécarlos constroem tipos antológicos com subtextos nos olhares e gestos mínimos, sobretudo os de provável caráter sexual. O primeiro fala pelo seu personagem e imita os trejeitos dos que o cercam. O mesmo faz o segundo do servilismo assustado do seu papel de pobre solitário à imitação dos gestos de uma criança ou ao tom de voz nas sondagens matreiras do chefe.

Alan Bennett, neste contexto, faz sentido no repertório do Tapa, que usa textos americanos e ingleses sem esquecer outras culturas. O roteiro de trabalho da equipe prevê futuras leituras dramáticas da nova dramaturgia de Portugal e a possível encenação do polonês Witold Gombrowicz, autor da extraordinária peça Ivone, Princesa de Borgonha. Está aí a razão de Retratos Falantes, além de suas qualidades literárias, ser outro acerto na caminhada do grupo.

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