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Em livro de viagem, Lygia Fagundes Telles detalha visita à China

'Passaporte para a China' é um diário de bordo sobre os 20 dias que a escritora passou naquele país, entre setembro e outubro de 1960

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Por Ubiratan Brasil
Atualização:

Rua Marconi, centro de São Paulo, 1960. Uma esbaforida Lygia Fagundes Telles topa com Samuel Weiner, editor do jornal Última Hora. “Vou tirar meu passaporte para a China”, justifica a escritora tamanha pressa. Interessado, o jornalista a convence a tomar um café. Depois de alguns goles, descobre que ela participaria, ao lado de outros intelectuais brasileiros, das comemorações do 11.º aniversário da República Popular da Nova China. “Por que, então, você não escreve crônicas sobre essa viagem para o jornal?”, indagou Wainer. “Até tenho o título da coluna: Passaporte para a China.” Nascia ali, em um encontro fortuito, um adorável diário de bordo com 29 textos que oferecem um olhar comovente e divertido daquele périplo de 20 dias ocorrido entre setembro e outubro de 1960. Um conjunto de crônicas que agora ganha, pela primeira vez, o formato de livro, intitulado justamente Passaporte para a China (Companhia das Letras). “Fazia tempo que eu pretendia publicar essas histórias, mas ainda tinha algumas dúvidas”, conta Lygia. O temor, na verdade, era antigo e foi alimentado por alguns anos por seu filho, Goffredo, hoje falecido. Quando a escritora, certa vez, revelou sua intenção de editar as crônicas de viagem, ele acendeu um cigarro e lançou a dúvida derradeira: “E se você for atacada na rua por algum crítico do sistema chinês?” Lygia concordou que o receio, apesar de exagerado, era procedente. Afinal, aquela viagem que ela e outros nomes ilustres (como a atriz Maria Della Costa, a também escritora Helena Silveira e o empresário Sandro Polônio, para lembrar alguns) realizaram por Pequim e Xangai tinha uma nítida conotação política: mostrar, aos olhos do resto do mundo, a perfeição de um sistema social que procurava esconder suas rachaduras. “Eu teria de ser uma vidente, como declarava Rimbaud sobre os autores, para saber que aquele governo iria se transformar em uma ditadura”, comenta Lygia que, compartilhando a prudência do filho, preferiu adiar a publicação das crônicas. Havia, no entanto, um excesso de precaução - hoje, quando os textos tornaram-se públicos graças ao livro, percebe-se que a própria autora revelou um certo estranhamento em relação à China edulcorada que lhe era apresentada. A começar pela insistência do guia designado para o grupo de intelectuais brasileiros, o senhor Wang, que impôs uma espécie de vigilância, impedindo que qualquer um escapasse da programação oficial. Lygia, chamada por ele de “Madame Telezê”, conta que o funcionário não permitia que se conhecessem as ruas, as pessoas em seu verdadeiro cotidiano, os anseios e as dificuldades. Matreira, ela conseguiu escapulir em alguns raros momentos e, em bairros que escapavam da perfeição apregoada, conheceu a verdadeira realidade do povo chinês. Essas fugas permitiram que Lygia relatasse preciosidades em suas crônicas. A começar por sua predileção por Xangai em detrimento a Pequim - apontada como uma vergonha chinesa, por conta de um passado marcado por prostituição, ópio e bandidagem, Xangai exibia as “sujeiras” que o regime maoista tentava esconder. Um dos grandes momentos da viagem foi o encontro com o líder Mao Tsé-tung. Ainda hoje, Lygia o recorda com perfeição de detalhes: “Era um homem atarracado, com os olhos muito puxados e uma expressão quase imutável”. Para sua surpresa, Mao presenteou os brasileiros com um livro de poemas, escrito por ele mesmo, em francês e chinês. “Os versos eram bons”, confirma a autora que, coincidência ou não, acabou perdendo o volume. Mesmo escritas à mão (Samuel Wainer arquitetou um esquema com companhias aéreas que recolhiam o texto na cidade onde estava a escritora), as crônicas trazem o estilo inconfundível de Lygia Fagundes Telles. Despreocupada em definir o limite que separa a realidade da ficção, ela apresenta, em seus escritos, fatos verdadeiros que são recontados ao sabor da imaginação, resultando em textos que almejam a perfeição estilística ao mesmo tempo em que obriga o leitor a pensar e repensar. Da viagem, picotada em várias conexões (África, Europa e União Soviética), Lygia trouxe apenas algumas gravuras como souvenir. As crônicas, portanto, representam um precioso testemunho, conservado graças à Carolina, então sua sogra. Afinal, foi ela quem guardou os textos publicados no Última Hora. “Como o jornal deixou de existir, não fosse por ela, essa viagem teria se perdido no tempo.” DO DIÁRIO > Lygia mostra como, nos aviões antigos, as aeromoças acertavam os ponteiros do relógio instalado na cabine de passageiros, de acordo com a mudança de fuso horário. > “Paris é do sexo feminino”, observa ela, quando na capital francesa. Dias depois, já na então Checoslováquia, escreve: “Praga também é uma cidade do sexo feminino, mas sem o decote e sem os olhos pintados”. > Em Moscou: “O café fraco mas a vodca fortíssima, pensei ao tomar o primeiro gole. E eis que de repente todo o sangue do mundo subiu-me ao rosto, estou na Rússia!” > “É um belo país, apenas é preciso que haja um pouco mais de corrupção”, observa uma autora argentina sobre a China

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