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Em busca de todos os 'eus'

'Está na natureza da ficção deixar de sermos nós mesmos', diz a escritora Ali Smith

Foto do author Maria Fernanda Rodrigues
Por Maria Fernanda Rodrigues
Atualização:

Pessoas discretas que evitam a troca de olhares com estranhos mas não resistem a ouvir a conversa alheia, que reparam no outro e não se importam, que querem falar e calam, que discutem a relação, desistem de um amor ou se tornam dependentes dele, que enlouquecem ou que aceitam uma vida calma povoam A Primeira Pessoa e Outros Contos, livro publicado pela escocesa Ali Smith em 2008 e que chega às livrarias brasileiras na próxima semana pela Companhia das Letras.

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Ao contrário da conterrânea Jackie Kay, que participará da Festa Literária Internacional de Paraty em julho sem nenhum livro editado em português, Ali chegou aqui em 2006 com o romance Por Acaso pronto e deixou o País mudada, mas não pelo fato de ter se tornado mais conhecida. "Ir ao festival ajudou a me tornar um ser humano de pleno direito. Experimentar o Brasil, mesmo que rapidamente, foi saber novamente o significado de estar viva", contou a escritora em entrevista por e-mail.

O livro é composto por 12 contos, quase todos em primeira pessoa. Se isso pode causar alguma confusão no leitor, que encontra no texto elementos que coincidem com o universo da autora? "Ficção significa todos os possíveis eus. E se pensarmos em apenas uma pessoa, tantos eus habitam essa pessoa. Então, cada eu é nós, você, ele, ela, eles."

Ali constrói a cena na presença do leitor e faz com que ele entre naquela casa britânica, no pub da cidadezinha tranquila, no supermercado ou no quarto do casal que conversa sobre como os dois se conheceram ou outros assuntos banais. E faz com que esse leitor conheça a intimidade de personagens delicados, em crise com a vida e lidando com seus medos, e que participe das conversas, que não são poucas no livro. Mas ela não se importa exatamente com esse leitor.

"Nunca penso nele. Só penso na história e no que precisa ser contado. Muito do que está na frente do nosso nariz e dos nossos olhos nos contará a história, mesmo aquela que não sabemos. Ela estará bem ali na frente se só olharmos, ou olharmos de novo."

No texto que abre o livro - Um Conto Real -, escrito em 2005 como uma resposta a uma fala do editor da Prospect no anúncio do Prêmio Nacional de Contos, como ela explica na obra, o narrador encontra dois homens num café e começa a especular que tipo de relação os dois teriam, mas desiste a certa altura. "Parei de inventar aqueles dois. Estava parecendo meio errado fazer aquilo. Melhor ouvir o que eles estavam dizendo. Estavam falando de literatura, o que por acaso me interessa, embora não vá interessar a muita gente. O mais novo estava falando da diferença entre o romance e o conto. O romance, ele estava dizendo, era uma puta velha e flácida. (...) Já o conto, em comparação, era uma deusa leve, uma ninfa magrinha." Para continuar discutindo a questão, o narrador liga para a amiga Kasia, que estava hospitalizada para tratar de um câncer, e é uma das pessoas para quem a escritora dedica o livro.

Em N’Água, a autora constrói uma inusitada e franca conversa entre a protagonista e seu eu de 14 anos, disparada depois que a narradora é beijada por uma estranha na rua. "Tem umas coisas que eu quero dizer a ela. Sobre nossa mãe, por exemplo, eu quero dizer alguma coisa do tipo: não se preocupe, ela vai ficar legal. Agora é um momento ruim, e só. Ela não morre até você ter o dobro da idade que tem agora", pensa a narradora. Entre os conselhos que de fato dá está o de não se assustar quando perceber que também gosta de menina. Questões discretas de gênero, aliás, perpassam alguns dos contos de Ali Smith, que muitas vezes não revela o sexo dos protagonistas.

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"Meus personagens, em sua maioria, podem ser o que quem está lendo precisa que eles sejam. Contos são muito elásticos, têm formas versáteis, e está na natureza da ficção deixar de sermos nós mesmos e sermos uma outra pessoa. Prefiro que a ficção seja inclusiva, não exclusiva, e contos podem ser muito abertos, embora sejam tão particulares", diz.

Como a ficção não pode ignorar nenhum assunto da realidade, como acredita Ali, a guerra aparece em dois momentos de A Terceira Pessoa. Primeiro, soldados passam por treinamento em uma praia para se acostumarem com o sol e não sofrerem tanto a guerra, e se divertem um pouco antes de serem mandados para a batalha. Depois, um homem conta ao amigo sobre a morte de um rapaz que conhecia, a que o jornal sobre a mesa se referiu como uma morte em "heroica luta".

Ali Smith, que escreve agora um livro sobre por que temos arte, misturando "ficção e discussão", explica a relação entre os contos. "Música, as estações do ano, a versatilidade do formato e a versatilidade do eu humano é o que conecta as histórias."

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