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Em busca da própria voz

Em A Construção, Caco Ciocler repete parceria com Roberto Alvim e se diz em momento de transição

Por Maria Eugenia de Menezes
Atualização:

Uma das últimas obras de Franz Kafka, A Construção é considerada por muitos como uma espécie de "testamento literário" do autor. A história de uma toupeira que se põe a construir uma toca para proteger-se de um inimigo desconhecido já foi vista como metáfora para a própria biografia do escritor de origem judaica. Ao fim da vida, ele também se via constrito entre duas ameaças. De um lado, o recrudescimento do fascismo, do outro o agravamento de sua tuberculose. Em sua adaptação, o diretor Roberto Alvim não escamoteia os aspectos biográficos do texto. Caco Ciocler surge em cena como clara evocação da imagem do escritor. Está diante de uma folha em branco, como se escrevesse, naquele momento, o texto a ser dito. Tal opção não encerra, contudo, o leque de interpretações que a peça pretende abrir. "A obra de Kafka é revolucionária porque tem a força de um enigma, capaz de oferecer um número infinito de leituras", crê o encenador. De fato, uma miríade de olhares parece possível. A novela pode ser encarada qual uma crítica do autor a sistemas, como o stalinismo ou o capitalismo. Da mesma forma, não soa despropositado enxergá-la como uma antecipação dos dilemas da liberdade que o existencialismo só colocaria anos adiante. Ou, ainda, como prefiguração das relações afetivas contemporâneas.Diante do medo de confrontar-se com o outro, cada indivíduo também costuma erigir sua toca, paredes e barreiras que o resguardem do perigo. Para Ciocler, passa por aí a chave para a compreensão dessa fábula. "Sempre vi esse texto como um tradução do meu mundo. As imagens que a peça provoca em mim não vêm de coisas que pesquisei. São extremamente pessoais." O que não resulta, ele acredita, em uma versão egoísta. "É uma questão de todo mundo. De como sobreviver a essa situação de ameaça que o outro representa. Esse bicho que se fecha. Mas não totalmente."Em princípio, Ciocler planejava fazer um filme com o argumento kafkiano. Chegou a convidar Walter Carvalho para dirigi-lo. Decidiu, porém, levar a proposta primeiro para o palco: "É onde me sinto mais em casa".Se nem sempre é possível fazer muitas escolhas na televisão, no teatro o ator parece ter se preocupado em manter certa liberdade. Passou por produções importantes, como Os Sete Afluentes do Rio Ota. Arriscou-se em trabalhos distintos, mas igualmente instigantes. Do drama histórico de Ibsen - O Imperador e Galileu - à ácida comédia Casting. "Estou passando por um momento de transição", observa o ator. "Quando as coisas aconteceram para mim, eu era muito ingênuo. As novas escolhas, portanto, têm a ver com maturidade. Com a vontade de deixar de atender apenas a convites e ir atrás do meu próprio desejo."Aparentemente, o encontro com a estética de Alvim propõe um território mais inseguro para o intérprete. Ao longo da encenação, ele tem os movimentos restritos e, na penumbra, pouco revela de seu rosto. Quase todo o trabalho concentra-se na enunciação das palavras. Em vez de contornos zoomórficos, o personagem surge como um ser algo esquizofrênico, cindido por múltiplas vozes. Outro dado que amplia a dificuldade de A Construção é a recusa em encontrar uma fórmula ou registro único de interpretação. "Eu me coloco numa posição de risco, de constante instabilidade. Determinada frase que num dia sai como ódio, no outro pode vir como desespero. Eu me permito, de fato, fazer a construção. E não vir com ela pronta."Essa tentativa de habitar o presente e distanciar-se de qualquer cristalização encontra eco no próprio processo criativo de Kafka, conhecido pelas poucas emendas que fazia aos seus escritos, sem a pose de uma coreografia literária predeterminada. "Ele não parece falar de uma experiência prévia, mas de algo que se dá ali, no próprio texto", observa o diretor. "Quando Caco diz aquelas palavras tenta se localizar no mesmo lugar em que elas foram escritas."Outro ponto em que ator e escritor se aproximam é no propósito de suas criações. Trancado em seu quarto, Kafka escrevia para si mesmo. Não para apreciação do outro. Paradoxalmente, constitui uma obra política. Ao discorrer sobre A Construção, Ciocler fala constantemente da busca por uma voz própria e pessoal. Mas talvez esteja aí o caminho para o definitivo encontro com o outro, para derrubar as paredes que ergueu para si. "A análise me colocou questões que mudaram minha visão de mundo. E o teatro é onde eu gostaria de me expressar. De que adianta descobrir isso sem compartilhar?"

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