Em ‘Abadon, o Exterminador’, Ernesto Sabato é objeto e sujeito da história

Romance afirma e confirma, para bem, e para mal, as características que definem o cânone sabatiano

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Por Redação
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Escrever é criar para si uma identidade. Das primeiras divagações poéticas adolescentes às tardias tentativas adultas, passando até, ou sobretudo, pelos empenhos de quem já se considera um profissional, o exercício da escrita procura criar algumas senhas individuais. Tornar-se reconhecível para si mesmo, afirmar uma singularidade e veicular uma forma própria e autônoma de ser são propósitos de quem se esmera em desenhar uma persona dramática que seja a um só tempo inteligível e única.

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No fim das contas, a vida real é, como a vida imaginada, uma ficção. Assim, e nestes contextos, a tênue e quase inexistente linha divisória entre o privado e o público, entre o mistério íntimo de ser e o ministério aberto de representar, entre a fidelidade a si mesmo e a relação desafiadora com o entorno afetivo e social, foram traços persistentes que muito marcaram a trajetória de Ernesto Sabato.

Não surpreende, portanto, que na página 19 de Abadon, o Exterminador, obra tão devedora das pegadas autobiográficas e de uma sombria visão apocalíptica, leia-se: “Escrever pelo menos para eternizar alguma coisa: um amor, um ato de heroísmo, um êxtase. Aceder ao absoluto”. Ademais, esta sentença de aspirações radicais é a versão que Sabato tem daquela outra versão que pretende, talvez com igual soberbia, criar para si uma identidade.

A obra de Sabato, começada numa idade relativamente jovem (com La Fuente Muda, 1940) e encerrada nas fronteiras dos 70 anos (Antes do Fim, 1988), deve ser entendida como uma grande elegia – frustrada, agônica, repetitiva, exaustiva – para encontrar a razão de ser e a inteligibilidade de uma vida. Escritor que sempre preferiu basear suas peças em seus próprios traços biográficos, ensaísta que retomou e revisou alguns temas vinculados à consciência de uma nacionalidade argentina em comoção pelas cambiantes condutas políticas e pelo surgimento do movimento peronista, agitador vocacional que tenta mitologizar tudo que lhe é próximo, tudo nele contribuiu para perfilar um homem íntimo e uma figura intelectual mais interessantes que sua lenda e seus livros. A literatura foi, para Sabato, como um baú sem fundo no qual cabia tudo; mesmo num volume de dimensões modestas, como o romance O Túnel (1948), um afã totalizador que conjuga a pressão psicológica, a reflexão filosófica e o apetite existencial.

Não foi tarefa fácil conquistar um lugar singular em seu país e na literatura que então se engendrava. Em primeiro lugar, porque o próprio Sabato demorou, em sua juventude, para se reconciliar com seu pendor literário: enveredou pelo estudo da ciência, viajou a Paris para aperfeiçoar seus estudos no Instituto Marie Curie, em seguida foi residir no Instituto de Tecnologia de Massachusetts e, em 1940, aceitou lecionar Física em La Plata. E, em segundo lugar, porque manteve uma relação complexa, cheia atração e repulsão, com o grupo que se organizou em torno da famosa revista Sur, do qual Sabato foi se separando aos poucos até se afastar definitivamente. Jorge Luis Borges, Adolfo Bioy Casares, Victoria Ocampo, foram, de fato, seus amigos. Mas uma postura de vieses esteticistas e a rejeição de uma ideologia que crescesse na experiência literária fizeram com que ele nunca se sentisse confortável em “um paradigma de precisão linguística, de economia, de elegância, de majestade e estatuária”, como o próprio Sabato escreveu ao definir Borges. Assim, e depois de uma etapa em que ele se decidiu a opinar de maneira consciente sobre a evolução da política argentina de um ponto de vista que hoje seria o de um esquerdista liberal, Sabato se voltaria cada vez mais para uma militância política do pensamento. Ele se converteu na consciência crítica de Sur em questões espinhosas como o peronismo ou a revolução cubana. E foi por estas escolhas que chegou a conquistar, numa Argentina sempre agitada e confusa, uma estatura pessoal própria – ela tampouco isenta de conturbações e confusões.

Dois fatos marcaram esse itinerário. Por um lado, apareceu, em 1961, Sobre Heróis e Tumbas, que, como no caso de O Túnel, recria o propósito de seus protagonistas de criar para si uma identidade, os jovens Marcelo e Alejandra, romance dividido em duas metades por um “Relatório sobre cegos” de forte intensidade narrativa, que se impõe como um relato quase autônomo dentro da estrutura do livro, e romance que se apropria de uma Buenos Aires riscada por hieróglifos oníricos. Por outro, e já com idade avançada, Sabato será uma referência de dignidade nacional cada vez mais renomada quando ocorre a reconquista democrática dirigida por Raúl Alfonsín.

Abadon, o Exterminador (traduzido por Rosa Freire d’Aguiar, que aproveita com maestria o caráter grandiloquente e o estilo retórico do livro para vertê-lo para o português) é um romance que afirma e confirma, para bem, e para mal, as características que definem o cânone sabatiano. Em suas páginas comparecem personagens de Sobre Heróis e Tumbas, comparece Ernesto Sabato como Sabato e também como S.; comparece o labirinto da cidade portenha como pano de fundo; os recursos à fragmentação, a citação e o desespero formal. Comparecem, também, aquele estado de transe e de devaneio peripatético que revela uma velha fidelidade à inspiração surrealista, o contraponto entre o íntimo e o sentimental onde este último rasgo infeliz (e, em geral, fastidioso) sempre ganha terreno. E comparece, por fim, um alarmado temperamento de laivos anarquistas moralizantes e que sem dúvida deve ter incomodado muito – como selo pessoal mais definido – um Ernesto Sabato que pretendia ambiguamente exercer o papel, de um lado, de inquisidor e, de outro, de visionário; o papel, sempre incerto do ponto de vista de uma identidade específica inventada tanto na realidade real como na realidade da literatura, de ser a um só tempo objeto e sujeito da história. 

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ABADON, O EXTERMINADORAutor: Ernesto SabatoTradução: Rosa Freire d’AguiarEditora: Companhia das Letras, 509 págs., R$ 63,50

TRADUÇÃO DE CELSO PACIORNIKDANUBIO TORRES FIERRO É ESCRITOR E CRÍTICO LITERÁRIO

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