Em 'A Bela Adormecida', diretor trata de caso de eutanásia que dividiu a Itália

O filme será exibido na Mostra de Cinema de São Paulo e depois entrará em circuito comercial

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Por LUIZ ZANIN ORICCHIO - O Estado de S.Paulo
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Em 1992, uma estudante de 21 anos, Eluana Englaro, dirigia seu carro em uma estrada quando, devido ao gelo da pista, perdeu o controle e se chocou contra um poste e bateu em seguida num muro. Entrou em estado de coma, para nunca mais despertar. Era mantida em estado vegetativo graças a alimentação e hidratação forçadas. Seu pai, Beppino Englaro, solicitou que desligassem os aparelhos, pois, segundo ele, a própria filha havia manifestado esse desejo caso acontecesse alguma coisa do gênero com ela. O caso gerou batalha judicial de 17 anos de duração que, em seu estágio final, comoveu e dividiu a Itália. Por fim, baseado em sentença favorável, Beppino conseguiu que desligassem os aparelhos da filha para que ela "partisse em liberdade", como declarou. É sobre esse caso que se debruça La Bella Addormentata (A Bela Adormecida), nova polêmica do consagrado diretor italiano Marco Bellocchio, cultor inveterado das controvérsias desde sua estreia com De Punhos Cerrados, em 1965. O filme será exibido na Mostra de Cinema de São Paulo e depois entrará em circuito comercial, distribuído pela Califórnia Filmes. A Bela Adormecida foi apresentado no recente Festival de Veneza e acolhido com 16 minutos de aplauso na sessão oficial. Em sua grande maioria, os críticos também o adoraram, mas Bellocchio não recebeu premiação à altura. Foi quase ignorado pelo júri. Durante a exibição no festival, alguns o tacharam de "filme anticatólico". Grupos chegaram a se manifestar falando em uma "segunda morte de Eluana Englaro". Isso mostra como os ânimos ainda estão quentes a respeito desse caso, que só teve seu desfecho em 2009, depois de a jovem Eluana ter passado 17 anos em estado vegetativo e irreversível. Bellocchio acha normais essas manifestações tardias. "Num país católico como a Itália essas coisas são assim mesmo", conforma-se, embora diga que "mesmo entre os religiosos existem posições mais matizadas ao lado das intransigentes". E relembra que, no caso de Eluana, as manifestações em frente da clínica onde ela estava internada nunca passaram de algumas centenas de pessoas. Mas o restante da Itália acompanhava o caso atentamente pelos meios de comunicação. "No dia a dia, foi uma polêmica midiática terrível, um embate entre leigos e católicos. Pode-se dizer que toda a Itália, naqueles dias, se ocupou do caso", diz o cineasta. Para abordar esse tempo e esse ambiente, Bellocchio recusa um documentário factual ou uma "cinebiografia" do caso real. É verdade que conversou com o pai de Eluana, Beppino Englaro. "Falei com ele por uma questão de respeito, e disse que iria fazer um filme de ficção, no qual o drama da sua filha estaria no enredo. Não opôs qualquer resistência", diz. Nem deveria. A história verídica de Eluana é citada, em imagens documentais, muitas tiradas da TV, mas fica como em pano de fundo, sobre o qual três histórias paralelas se desenrolam. Numa delas, o senador Uliano Beffardi (Toni Servillo), ligado a Silvio Berlusconi, está votando a lei que proíbe a eutanásia em qualquer caso, pela qual seu partido fechou questão, mas da qual ele, pessoalmente, não se sente convencido. Sua filha (Alba Rohrwacher) é uma fervorosa militante católica pró-vida enquanto o caso Englaro está se desenrolando. Numa manifestação em frente da clínica, ela conhece um rapaz (Michele Riondino), que defende a tese contrária, e os dois se apaixonam. Na segunda história, uma famosa atriz (Isabelle Huppert) trata sua filha em coma como uma boneca, a veste, penteia e enfeita enquanto espera que um milagre a desperte de novo para a vida. Na terceira, uma garota bonita (Maya Sansa) é dependente de drogas autodestrutiva e tenta por fim à vida, mas é salva por um médico jovem (Pier Giorgio Bellocchio, filho do diretor). Um enredo multiplot, hábil, no qual várias questões estão entrelaçadas. O mundo da razão política e da consciência individual; a esperança irracional porém divina de uma mãe; uma jovem sadia que pretende se matar, em oposição aos que defendem a vida mesmo quando esta não vale mais a pena e não tem mais sentido. Bellocchio faz um cinema de emoções e de ideias. Entra nesse jogo tentando compreender todas as posições, sem demonizá-las, apesar de dizer, brincando (e a sério): "Não me converti", diz. "A minha é sempre uma posição laica. Posso até me colocar no lugar de quem tem fé. Não quero condenar. Tenho as minhas convicções, mas não desejo achar que sou o dono da verdade". Tamanho respeito pelo outro do qual se diverge provocou algum espanto. Em especial pela maneira com que ele trata um senador do partido de Berlusconi, político com o qual obviamente ele nunca se afinou. No entanto, "não é necessariamente verdadeiro que os políticos da Forza Itália sejam criminosos, embrutecidos. São pessoas de diversas proveniências. Há certamente entre eles pessoas competentes e honestas", diz. "A mim interessava este tipo de pessoa, porque em 1992, durante o processo de Mani Pulite (mãos limpas), muitos socialistas foram condenados, alguns inocentes, e se suicidaram na prisão. Havia uma atmosfera justiceira e primária, em parte devida ao ex-Partido Comunista. Esses condenados foram defendidos por Berlusconi e, alguns deles, como o senador Beffardi, ingressaram nesse partido, pois acreditavam que seria um contrapeso ao dogmatismo do Partido Comunista." Obra dialética. Sutilezas da política italiana, presentes num filme que não se presta a ser usado como bandeira por um lado ou por outro. É obra multifacetada, que expõe os vários lados da questão ao espectador e deixa que ele mesmo tire conclusões a respeito. Obra dialética, no sentido próprio. Diálogo, pontos de vista divergentes que se afrontam no mesmo espaço de discussão. Isso sob uma forma dramática e não panfletária. "Fiz um filme coral, sem nenhuma tese prévia a ser demonstrada. É plural, não no sentido vulgar de que todos têm razão, mas que é preciso examinar com respeito as razões dos outros. A minha posição é sempre laica, claro. Não creio que o filme tenha essa atitude de querer conciliar todas as posições, mas também evita escolher uma e desqualificar as demais", diz o diretor. Bellocchio tem horror a simplismos. Por isso se recusou, durante as entrevistas a responder a perguntas como "Mas, afinal, você é contra ou a favor da eutanásia?". "Não queria usar o filme como bandeira desta ou daquela ideia, apenas ver como um caso trágico como este pode tomar o pulso de um país complexo como a Itália, com todas as suas contradições." Respeita as conclusões alheias, inclusive as que dizem que, no fundo, A Bela Adormecida não é outra senão a própria Itália. "É uma boa interpretação do filme", diz, rindo. Marco Bellocchio, o cineasta engajado, que já teve convicções muito rígidas, hoje é bem mais tolerante com as opiniões alheias, sem nunca renegar suas crenças. "Penso ser um não reconciliado, mas não creio na violência para resolver os problemas. Matar o adversário leva sempre à própria derrota. Esta é a minha convicção hoje. Há em mim uma insatisfação permanente, que não me abandonará jamais, mas a ação não passa pela violência", conclui.

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