Ellroy amontoa clichês para fazer boa literatura

Sai no Brasil o quarto livro da série sobre a Los Angeles corrupta nos anos 50 do autor de Los Angeles - Cidade Proibida e Dália Negra

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Por Agencia Estado
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Dave Klein é um advogado sujo. Descobriu que poderia usar os conhecimentos legais para ganhar mais dinheiro sendo um policial sujo. Instrumentos escusos levaram-no a tornar-se um policial sujo. Seus chefes são sujos. Controlam o tráfico de drogas, a prostituição, a jogatina ilegal. Têm aspirações políticas e travam briga suja para ver quem chegará ao poder. Controlam o loteamento da cidade, fazem chantagem com negros e latinos - minorias sujas. Howard Hughes - um personagem real, recorrente na obra de James Ellroy - é um magnata sujo. Ganhou dinheiro com aviões e armamentos, tem jornais obscenos, faz jogos policialescos e políticos, patrocina cinema - chantageia atrizes, centenas delas, todas, necessária e obrigatoriamente, suas amantes - contrata Dave Klein, que já é contratado de outros figurões sujos. Joan Crawford - outra personagem real - presta-se a atos sexuais com bandidos e cria flagrantes para chantagens. Todos bebem muito, varam noites em orgias, vendem e usam qualquer tipo de droga bebível, cheirável, injetável, em Jazz Branco, o novo lançamento da Coleção Negra da Editora Record. É o quarto livro da série sobre a Los Angeles corrupta dos anos 50 escrito por James Ellroy. Dele, já saíram no Brasil Los Angeles - Cidade Proibida, Tablóide Americano, Noturnos de Hollywood, Meus Lugares Escuros e Dália Negra. São livros muito parecidos entre si, à exceção de Meus Lugares Escuros, em que Ellroy investiga o assassinato de sua mãe. Ele era pré-adolescente e vivia com o pai, quando a mãe foi assassinada, em 1958. As investigações resultaram em nada. Mais de 30 anos depois, Ellroy reabriu o inquérito, contratou detetives e participou ativamente da nova investigação. A investigação deu em Meus Lugares Escuros, sem solução para o crime - que já havia servido de inspiração para Dália Negra. Ou seja, Meus Lugares Escuros é diferente apenas porque é, de forma explícita, baseado em fatos reais. Mas trata, como Jazz Branco, das obsessões do autor: torturados e torturadores, corruptos e corruptores, prostituídos e proxenetas, excluídos e mentores da exclusão - pobres ou milionários, brancos, negros, latinos, índios, são todos sujos. A história básica de Jazz Branco é a mesma de todos os livros de Ellroy já lançados aqui: um policial - Dave Klein, no caso -, assim como cada um de seus companheiros, quer subir na vida a qualquer preço. O que justifica a viagem ao último círculo do inferno com que o autor brinda seus leitores. Carnificina. Racismo. Sexo promíscuo. Drogas. Negociatas. Redenção - Ellroy se vangloria do passado de delinqüente (o que se justificaria pela morte da mãe) e da remissão - a redenção se dá pela escrita, como diz em Meus Lugares Escuros. Foi escrevendo que deixou de ser bandido. Mas não há remissão para os personagens de Ellroy. Em Jazz Branco, parte significativa dos protagonistas é incestuosa. Dave Klein, o narrador (na primeira pessoa), também. Nenhum arrependimento, nenhuma culpa, nenhuma desconforto moral. Só um sentimento de perda - a irmã arranjou outro homem (ou foi Klein quem arranjou outro homem para ela). Para Klein, entre um tiroteio e outro, uma extorsão e outra, uma falcatrua e outra, sobra uma sombra de amor pela estrela-prostituta-garçonete-ex-amante de Hughes (de quem está fugindo e a quem ajuda a ferrar), Glenda Bledsey, uma louraça com marcas de punhaladas nos ombros. Quase redenção, o amor por Glenda fica em segundo plano, na hora em que o negócio é defender a própria pele. Ellroy é amoral ou moralista? Já foi acusado de ser anti-semita, homófobo, misógino, racista, fascista. Diz que não: Los Angeles é assim, seus personagens são Los Angeles - à confortável distância de 40 anos (o tempo presente de Jazz Branco é 1958; o livro foi escrito em 1992). Dito assim, parece que Jazz Branco é um amontoado de clichês - e é, mas há o poder da escrita de James Ellroy. Nem mesmo importa que a trama de seus livros seja perfeitamente compreendida (voltas no tempo, quantidade de personagens, multiplicidade de situações). Não se trata de narrativa seca e desadjetivada, como a dos clássicos do romance policial. Mais do que isso, Ellroy James quase abole, em Jazz Branco, a construção frásica. Joga os verbos constantemente no infinitivo (o uso é estritamente utilitário: fugir é fugir, andar e andar, sangrar é sangrar, morrer é morrer), não acompanha as ações, não descreve as cenas. Sugere-as, em traços que não são telegráficos mas taquigráficos. Decifre-os. É o jogo de dar sentido ao escrito que faz o encanto do livro. Você sabe (mesmo que nunca tenha lido James Ellroy) como a coisa vai acabar - é tudo esquemático demais para que restem dúvidas. O fascínio é: de que maneira esse autor, à diferença de outros autores, vai contar a velha história. E a isso se dá o nome de literatura. Jazz Branco, de James Ellroy, trad. de Alves Calado. Coleção Negra da Editora Record. 448 páginas, R$ 38.

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