Élio Gaspari conta história do regime militar

Jornalista traça os dois primeiros dos cinco volumes sobre o período, A Ditadura Envergonhada e A Ditadura Escancarada

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Por Agencia Estado
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Talvez pela proximidade histórica, talvez pelas dificuldades da historiografia brasileira, o período do regime militar (1964-1985) era mais pródigo em interpretações do que em informações. Diversas perguntas pairavam sobre diversos episódios, como nuvens de chumbo, e as avaliações se dividiam com a mesma carga elétrica que dividiu aqueles anos todos. Com um arsenal exclusivo de arquivos, entrevistas e livros e um texto cortante e denso, o jornalista e agora historiador Elio Gaspari acaba de mudar essa história. A Ditadura Envergonhada(424 págs., R$ 40) e A Ditadura Escancarada(512 págs., R$ 44), que a Companhia das Letras publica, são os dois primeiros volumes da obra em cinco que se chama As Ilusões Armadase que, desde já, desarma as versões de direita e esquerda sobre seus papéis. Gaspari recusa a qualificação da obra como uma história abrangente do regime, porque põe ênfases em determinados personagens e processos que não correspondem exatamente às reais. Geisel e Golbery, por exemplo, são os protagonistas do trabalho, tomando a frente de outros como Médici. O livro se preocupa centralmente com a história da repressão militar, ainda que não deixe de contar os movimentos políticos e culturais da época. O segundo volume, especialmente, e como o próprio Gaspari avisa na introdução, dá muito mais atenção às guerrilhas e aos seqüestros, a personagens como Marighella e Lamarca, do que ao ?milagre econômico? do governo Médici. Para Gaspari, interessa mais ao Brasil o ocorrido no Araguaia do que o avanço das indústrias. Mas as ênfases não tiram da série a força panorâmica. Está tudo ali e, melhor ainda, muitas novidades estão ali. Gaspari detém os arquivos de Geisel, Golbery e de Heitor Aquino Ferreira, secretário de ambos, e travou conversas com o trio durante muitos anos, trocando o silêncio pelo acúmulo de informações. Revelam-se muitos fatos e declarações. Além disso, não faz relato linear e burocrático, mas comenta e analisa as interpretações sobre os episódios e assim lança mais luz ainda. Uma das principais impressões que a leitura dos dois volumes deixa é a de que muitos dos acontecimentos foram mais casuais e auto-alimentados do que se supunha. A sucessão de atos e contingências parece ganhar moto próprio: muitas das criaturas tomam conta dos criadores, passando de coadjuvantes a determinantes. O que se forma é em grande parte um produto da confusão e dos improvisos, e as mesmas contradições que levam um grupo ao poder são as que de lá o tiram depois. É por esse motivo que a narrativa de Gaspari pode desagradar tanto a certa direita como a certa esquerda, mas certamente agradará aos leitores que durante tanto tempo buscaram uma interpretação com mais zonas cinzentas ? numa história que se caracteriza justamente por ser uma grande zona cinzenta. Mais que todas, a versão de que o golpe de 64 foi dado com um objetivo pré-planejado, com um Projeto Nacional a lhe servir de alicerce, é derrubada. E essa versão satisfazia tanto aos que apoiaram o regime, com ou sem ressalvas, quanto aos que foram as maiores vítimas dele, sem ressalvas. Para aqueles, o Brasil estava a um passo de ser cooptado pela Internacional Socialista, simultaneamente chafurdando na corrupção e na desordem. Para os adversários, o regime autoritário se instalou para conter um processo que Jango, ainda que vacilante, teria iniciado, como prenúncio de uma era romântica, que engajaria a população em questão de pouco tempo. No primeiro volume, de 1964 a 68, Gaspari mostra a fragilidade institucional da democracia brasileira pré-golpe, demonstrada pela capitulação das principais lideranças civis ao que seria um corretivo militar, à intenção de Castello Branco de arrumar a casa e reconduzir à democracia já em 1965. Mostra como Jango, talvez a caminho de um golpe ou suicído político, foi inábil ou irresponsável no auge de uma crise militar, a da rebelião dos marinheiros, e como não tinha condições de resistir ao movimento que, iniciado quase autonomamente pelo general Mourão em Minas, culminou no golpe. Mostra que o governo americano foi informado e estava de prontidão para ajudar o golpe, mas que não foi seu mentor. E mostra como a linha-dura, encabeçada por Costa e Silva, logo foi tomando o primeiro plano e impondo uma reação cada vez mais radical aos protestos de estudantes, jornalistas e artistas. No segundo volume, de 1968 a 1973, mostra que o AI-5 não pode ser classificado de ?golpe dentro do golpe?, tal a descrença democrática da maioria dos pais do regime, e mostra sobretudo o peso da anarquia interna das Forças Armadas, tal o medo da insubordinação das ?bases?. Mostra como a tortura ganhou primeiro a condescendência da cúpula e depois, para enfrentar surtos de ?terrorismo?, se tornou seu principal instrumento de poder, chegando à lógica do extermínio que teve sua maior expressão no ataque à guerrilha do Araguaia. E mostra os delírios e as ingenuidades dos intelectuais e políticos de esquerda ? como Brizola, que teria recebido soldo castrista ? que justificavam a luta armada e acreditavam que a população brasileira não estivesse a favor da ?arrumação?. Nos dois próximos volumes, a serem lançados no ano que vem, Gaspari deve centrar a narrativa na atuação de Geisel e Golbery e em suas diferenças, cobrindo o período de 1974 a 79. (O quinto volume, ainda não escrito, vai relatar a passagem para o governo Figueiredo, último suspiro autoritário, terminando na explosão da bomba no Riocentro.) E, depois de desmitificar o projeto militar e o sonho socialista, vai novamente mostrar como a armação da abertura pós-Médici veio da falência do desempenho político-econômico dos militares, não de sua benevolência ? e tampouco de uma intensa pressão social. Os atores do regime, na entrada e na saída, tiveram bem menos controle do processo do que se costuma pensar. Queriam pôr as rédeas na anarquia, mas eram eles mesmos um fruto dela. Os extremismos vieram também das circunstâncias históricas, já que o Brasil teve um regime autoritário num momento em que o mundo vivia a liberação contracultural. Ao mesmo tempo, a ditadura brasileira, servida em rodízio, não chegou aos níveis de violência de outras latino-americanas, justamente por seu caráter de despreparo e instabilidade. Mas o que Gaspari retrata é o custo maior do ilusionismo.

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