PUBLICIDADE

Eles não queriam o poder, mas desacatá-lo

Líderes do movimento falam ao Estado sobre motivações que levaram ao Maio

Por Andrei Netto
Atualização:

Em dezembro de 1967, Raymond Aron, filósofo e grande referência teórica do liberalismo e do pensamento de direita na França, anunciou oficialmente seu desligamento da Sorbonne. Ao imolar seu posto, um dos mais almejados pela intelligentsia parisiense, Aron denunciava o imobilismo das instituições universitárias do país. Nove meses depois, em agosto de 1968, Aron publicaria La Révolution Introuvable, uma crítica ardente contra as então recentes revoltas estudantis que haviam eclodido em Nanterre e Paris e se irradiado para o mundo. Para o filósofo, na primavera de Maio de 68 o discurso fora substituído por um projeto político inexistente. Era, neste sentido, simulacro de revolução.   "Deslocar o bloco social da universidade sem saber que bloco construir ou a fim de deslocar a sociedade inteira é niilismo de estetas, ou melhor, irrupção de bárbaros, inconscientes de sua barbárie", escreveu Aron. Seu livro hoje é artigo de colecionador. Banido das livrarias, não costuma ser lembrado entre as interpretações de Maio de 68 nem por aqueles que também encontravam na arbitrariedade, no centralismo e na burocracia do poder nas universidades da França a razão inicial de sua revolta.   Nas quatro décadas que se seguiram, a demonização da análise de Aron se deu, em parte, por ser de fato uma visão acalorada, reacionária, rancorosa até dos eventos. Mas a expressão "revolução inencontrável" vem sendo cada vez mais citada nas análises publicadas na França em 2008 sobre os 40 anos de Maio. As leviandades e desamores da obra de Aron em relação à revolta estudantil podem ser descartados, mas não a idéia de que havia, em Maio de 68, um vínculo perdido em relação à idéia de revolução, sempre presente no imaginário local desde 1789, marco da Revolução Francesa. Hoje, há na França uma tendência intelectual que afirma com convicção: Maio de 68 foi o fim do parêntese revolucionário na história da modernidade.   A análise parece em desacordo com os relatos históricos que mencionam as bandeiras vermelhas - de comunistas - e negras - de anarquistas - em meio às multidões que protestavam em Paris. Também destoa da maior greve jamais realizada. E talvez entre em conflito com o discurso de muitos dos líderes do movimento, que mencionavam a palavra "revolução" em seus discursos ou que, como Guy Debord e os situacionistas - intelectuais do movimento -, agiam como se fossem a esquerda da extrema-esquerda. Mas na França não havia um ideário que conduziria à tomada do governo. E esse é, precisamente, o ponto que indicaria o esgotamento da idéia de revolução: se em 1789 o povo ansiava pelo poder, em Maio de 68, ninguém de fato o queria.   "Maio de 68 trouxe à luz uma revolta imaginária com todos os elementos dos movimentos revolucionários", disse ao Estado Jean-Pierre Le Goff, autor do clássico L’Héritage Impossible (A Herança Impossível, de 1998). "A idéia de revolução é a própria história da França. O que diferencia as revoltas de então é que as barricadas da rua Gay-Lussac em 1968 têm uma dimensão simbólica", explica. Os franceses vão às ruas, protestam e bloqueiam as cidades, como fizeram seus antepassados na Revolução Francesa ou na Comuna de Paris. Os sindicatos se mobilizam e os partidos se organizam. "A adesão dos trabalhadores incorpora ao movimento uma visão política que pára o país e traz à tona a idéia da revolução possível. Mas Maio de 68 é iconoclasta e híbrido, é um movimento de catarse. Quando o movimento sindical ganha força, em 13 de maio, muitos estudantes que participavam até então se perguntam: ‘Por que a história de sempre volta à tona?’. E aí vão para casa."   Na geração do pós-guerra, dos 30 Anos Gloriosos de modernização da França após 1945, a idéia de sacrifício pelas gerações futuras era central. A geração seguinte, de 68, que não conheceu as privações da 2ª Guerra, relançou a idéia de viver o presente. Para Le Goff e para os demais intelectuais franceses que reinterpretam o movimento, Maio de 68 é nesse sentido, antes de uma reunião política de militantes marxistas, maoístas, trotskistas ou anarquistas, a denúncia do poder, da repressão, da autoridade, do autoritarismo e do totalitarismo, além da queda do paradigma de que estamos progredindo. É por essa razão que os partidos revolucionários de extrema-esquerda, como os de direita, são aspirados, então, para o centro do alvo de protestos estudantis. Eles também são autoritários, dizem os estudantes, assim como o são os pais, a família, a polícia, os patrões, o Estado, o capitalismo, o comunismo, a sociedade... o sistema.   "Resumir Maio de 68 a uma tentativa de revolução é compreender mal o que aconteceu. À parte alguns grupos politizados, ninguém queria tomar o poder", explica ninguém menos que Daniel Cohn-Bendit, o líder de 22 de Março, dia em que eclodiram os protestos em Nanterre, na periferia rica de Paris. O mesmo Cohn-Bendit, em entrevista à revista Le Magazine Littéraire, editada há 40 anos, em meio aos acontecimentos, já alertava: "O movimento estudantil não é um movimento revolucionário, mas de revolta." E essa revolta, em diferentes versões, chegou a Praga, Berlim, Londres e Madri, ao México e ao Brasil.   É talvez nessa irradiação das revoltas pelo mundo, entende Le Goff, que reside o erro da interpretação "revolucionária" do Maio de 68 francês. Na Primavera de Praga ou no Brasil, as revoltas tinham de fato caráter político, de libertação de regimes opressores ditatoriais. Na França republicana e democrática, não tanto. "A autoridade não era contestada em si, mas as formas de exercício do poder", reconhece Henri Weber, outro dos líderes do movimento, hoje deputado europeu do Partido Socialista. "O autoritarismo que nós encontrávamos em todas as células sociais, na empresa, no casal, na família, na escola, na universidade, era o nosso adversário." Efeito colateral, diz Weber, foi a reemergência da idéia revolucionária: "Maio de 68 paradoxalmente reativou a cultura do confronto, do conflito, que existia muito profundamente na sociedade francesa."   Mas, se revolução sem ideário político claro não existe, Maio passa a ser enquadrado como uma nova forma: revolução cultural. Mais uma vez, retorna-se à fixação francesa. Edgar Morin, um dos inspiradores intelectuais do movimento - ao lado de Herbert Marcuse ou Jean Baudrillard, de Cornelius Castoriadis, Claude Lefort ou Jean-François Lyotard, entre outros -, não concorda. As revoltas são, para ele, um epifenômeno, um alerta concentrado e explosivo. "Maio de 68 é um catalisador, um acelerador, um amplificador de algo que se prepara insensivelmente. "Revolução cultural é uma expressão muito forte, evolução cultural, muito fraca. Digamos transmutação cultural", analisava Morin, em uma entrevista concedida em 1976. "O estranho é que tudo continua como antes. Mas nada mais é igual. (...) Tudo continua maquinalmente, enquanto ninguém mais acredita na máquina."

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.