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Ediouro relança clássico de Dostoievski

Em Os Irmãos Karamazov, agora relançado, o escritor conta uma das histórias de maior impacto da arte literária, sobre uma família russa do século 19.

Por Agencia Estado
Atualização:

Não há livro de Dostoievski (1821-1881) que não ofereça redenção. De Recordação da Casa dos Mortos e Notas do Subterrâneo a Os Possessos e Os Irmãos Karamazov ? agora relançado no Brasil pela Ediouro ?, passando por Crime e Castigo e O Idiota, há sempre um personagem santo ou que será santificado. Cristão, Dostoievski tinha profundo interesse em profetas e reservou longas passagens em seus romances para pregações. Mas, curiosamente, o que há de mais memorável ? de mais inconfundível ? em seus livros é o sofrimento culpado, o mergulho no que chamou de ?inferno da dúvida?, no tormento daqueles que desafiam Deus e suas leis. Lembramos menos as salvações que as condenações, menos o desfecho que o delírio. A religião de Dostoievski ? em quem Tolstoi julgava haver algum ?sangue judeu? ? é a da provação, do prêmio destinado àqueles que padecem muito, como Jó e Cristo. Sem paixão, cuja etimologia grega significa ?sofrimento?, não há revelação: a graça é dos desgraçados. É por isso que toda sua ficção é povoada por personagens que vão às situações-limite, que vão aos extremos ? crimes, sobretudo ?, que beiram o abismo e tremem de vertigem. É um de seus valores como artista que Dostoievski tivesse consciência da força dos tormentos diante da promessa da absolvição: aqueles justificam esta. Daí a condição dos excêntricos, ou seja, dos que estão fora do centro. Apenas eles podem enxergar o outro lado; exatamente por não pertencerem à média, podem representá-la. Fica assim difícil separar o pregador e o artista. Nabokov, o autor de Lolita, foi um dos que se queixaram de Dostoievski, que considerava ?histérico?. Há leitores que se chateiam com o torvelinho, com o remoer interminável dos personagens de Dostoievski, com a obsessão deles em purgar a culpa, em redimir seus atos anticristãos. Mas Dostoievski não seria Dostoievski sem tais excessos ? era justamente nos excessos que ele estava concentrado. Não fosse, seus livros não teriam a complexa arquitetura que os sustenta, suas irregularidades seriam facilmente puladas, seus romances não seriam o carnaval de vozes que o teórico russo Mikhail Bakhtin analisou. Como Dostoievski podia cavoucar tanto um sujeito e ainda assim criar um mundo exterior, de cenas e personagens tão convincentes de sua São Petersburgo fria e úmida? Os Irmãos Karamazov é sua maior obra nesse sentido. Notas do Subterrâneo, Crime e Castigo e O Idiota têm forte domínio de uma personalidade central. Em Notas, o narrador que vai às raias da indiferença diante dos outros vê que não há auto-suficiência ao alcance humano. Em Crime e Castigo, a autojustificativa sem fim ? sem paz ? de Raskolnikof ocupa muito mais páginas que os atos que o atormentaram. Em O Idiota, o purismo de Mishkin o conduz ao isolamento, só que continua intacto. E mesmo em Os Possessos, em que diversos radicais se fazem ouvir, a voz de Stravogin predomina, influenciando a dos outros, servindo ao autor para demonstrar que a alma russa precisa da cautela cristã. Em Os Irmãos Karamazov, o embate de vozes é menos desigual. O motivo talvez fosse o fato de Dostoievski estar enfrentando uma questão pessoal incomparável com qualquer outra: a presença do pai. No primeiro volume de sua competente biografia de Dostoievski, As Sementes da Revolta (publicado no Brasil pela Edusp, que já lançou também o segundo volume), Joseph Frank conta como o escritor se sentia oprimido pelo pai, um homem orgulhoso e autoritário, e ao mesmo tempo tinha compaixão por ele, por ?ser desiludido com o mundo?. Esta é uma chave para entender tanto o sentimento de Dostoievski em relação ao pai como em relação ao mundo ? ou seja, sua literatura, ambiguamente posta entre a rebelião e a compaixão, num passo além do romantismo e do realismo. Frank desconfia da célebre história de que a primeira crise de epilepsia de Dostoievski teria ocorrido depois de ele saber da morte do pai, assassinado por servos, os mujiques, normalmente maltratados por ele. Também não dá crédito às especulações de Freud, que, em ensaio sobre a vida do escritor russo, viu nele (como sempre) traços homossexuais, oriundos desse sentimento de ter sido rejeitado pelo pai (que o teria flagrado masturbando-se). Mas, de qualquer modo, o pai de Dostoievski era uma fonte de tormenta em sua cabeça, de culpa, que ele até certo ponto expurgava em sua defesa do cristianismo e do eslavismo, da ?verdadeira alma russa? que estaria no campo e na crença. Ateísmo ? O principal inimigo de Dostoievski era o ateísmo, do qual eram parceiras a ciência e a burguesia. Então, seguindo seu método peculiar de defender a fé (que analistas já se cansaram de comparar ao do pensador Kierkegaard), era preciso dar uma voz poderosa ao ateísmo. Em Os Irmãos Karamazov, essa voz é a de Ivan, o filho intelectual, que polemiza fortemente com Alieksiei, o filho padre, que diz a famosa frase: "Se Deus existe, então tudo é permitido". O confronto é tão caro a Dostoievski que ele inventa uma lenda, a Lenda do Grande Inquisidor, e lhe reserva um capítulo especial. A intenção é demonstrar que a felicidade espiritual é libertadora, enquanto a material é tirânica; e que a Igreja Católica européia, o Grande Inquisidor, promete ao fiel uma felicidade terrestre, concreta, opressora porque excludente da outra. Não basta acreditar em Deus: é preciso acreditar em um Deus que não é feliz. Embora o capítulo possa ser lido à parte, não é possível, como sugere Otto Maria Carpeaux no prefácio republicado pela Ediouro, extirpar a metafísica de Dostoievski de sua arte. É essa mesma metafísica que o faz trabalhar na maioria dos livros com os pares de personagens muito semelhantes, quase duplos, que por isso mesmo se chocam intensamente em suas relações. É ela que lhe dá a capacidade de intensificar os atritos de temperamentos e levá-los para a escala de reflexão sobre a existência humana. É ela que aproxima por ângulo único o leitor e os personagens, que, por causa dos enredos simples, quase poderiam ser estereótipos, na mão de outro escritor. Em Os Irmãos Karamazov, Dostoievski se pôs inteiro. Suas vivências ? o período na Sibéria, o pai autoritário, a epilepsia, a morte de um filho ? estão todas ali. Mas também está ali um vasto painel da Rússia, de suas variadas classes, de seus homens, mulheres e profetas, os bêbados, os carbonários, os criminosos. É como uma síntese de seus livros anteriores. Se a concepção religiosa de Dostoievski e sua prosa dramática pudessem ser separadas, essa habilidade de mergulhar em vozes interiores e traçar um amplo e complexo painel social não existiria. E Dostoievski não seria tão caro ao leitor sensível, muitas vezes na adolescência, que é tão tocado por sua intensidade moral, sem precisar adotar seu moralismo. Seu grande contemporâneo e rival, Tolstoi, para ele não ia além da descrição da realidade em seus detalhes, era um ?historiador?; para Tolstoi, Dostoievski não conseguia olhar o mundo a distância, para então iluminar o detalhe. Como estuda George Steiner em seu Tolstoy or Dostoevsky ? An Essay in Contrast, eles tinham religiões diferentes: o humanitarianismo de Tolstoi, sua utopia coletivista, era para Dostoievski equivalente à promessa de felicidade terrena, como a do Inquisidor; a ortodoxia masoquista de Dostoievski, sua crença no sofrimento redentor, era para Tolstoi uma fuga da paz e da razão. Em outra passagem conhecida de Os Irmãos Karamazov, o diálogo entre o Diabo e Ivan, o Diabo diz que pode dar a Ivan mais originalidade que um enredo de Tolstoi. Mas nós não precisamos escolher entre Tolstoi e Dostoievski. Apenas ver o que cada um tem de mais original.

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