Ecos solitários do lado negro

O misterioso The Weeknd encerra a trilogia de R&B soturno que fez do grupo um dos destaques de 2011

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Por Roberto Nascimento
Atualização:

"Você perdeu a dignidade, baby? Não se preocupe, pois você não precisará dela no loft em que eu vou te levar", anunciou Abel Tesfaye, a enigmática voz do coletivo canadense The Weeknd, no álbum House of Balloons, de 2011. Narrar o que se passa no tal loft, de favores sexuais degradantes ao uso compulsivo de cocaína e analgésicos - ou criativas combinações dos dois - é o foco do R&B sombrio e sedutor de Tesfaye, que lançou seu terceiro disco agora em dezembro, e encerrou 2011 como a figura mais falada do gênero. Em House of Balloons, Thursday e o recente Echoes of Silence, todos lançados em menos de um ano, as drogas do cantor surtem efeito melancólico. Seu falsete doloroso é envolto em um manto escuro de produção eletrônica, e sua descrição de um mundo de desejo e pecado, uma variação sobre o tema 'champanhe e boates' que até recentemente foi a força central do rap americano, nos cativa. Os contos de Tesfaye são depoimentos de uma alma perdida, que há tempos abdicou de sua inocência, mas não tem outra saída a não ser se entregar ao lado negro e nos detalhar suas histórias lascivas e anestesiadas - receita executada com categoria por ele e seus parceiros Doc McKinney e Illangelo, responsáveis pelos arranjos lentos e espertamente arquitetados, que dão o tom dos discos. Quando House of Balloons surgiu em março do ano passado, o refrão de Party & After Party, canção de duas partes, virou hit imediato. Na faixa, o Weeknd transmite o arco de efervescência à decadência de uma festa impulsionada por entorpecentes, colorindo-a com o sample quase pueril de Master of None, da banda indie Beach House. Soa como um eco de Its My Party, de Leslie Gore, o hit dos anos 60, embora a festinha aqui termine na manhã seguinte, com os gemidos de Tesfaye e uma garota no sofá. Este voyeurismo, por mais crasso que soe na página, é contagiante. Em menos de uma semana do lançamento do primeiro álbum, disponível gratuitamente pelo site The-Weeknd.com, Tesfaye recebeu diversas ofertas de gravadoras, além de uma proposta para se apresentar por US$ 25 mil, de acordo com uma entrevista concedida à revista Billboard. Tornou-se o nome mais badalado da blogosfera independente, certamente a revelação do ano no circuito pop, e recebeu a bênção de Drake, o rapper mais destacado de 2011 - o que fez de sua popularidade um caso à parte, pois agrada a um público difícil de definir, equilibrado entre o pop e o indie. Encerrou 2011 em diversas listas de melhores discos, do New York Times ao Guardian.House of Balloons foi o primeiro de uma trilogia de mixtapes, como foram batizadas, embora tenham uma qualidade mais lapidada do que se acostumou a associar ao formato. São álbuns gratuitos, que representam um modelo de marketing musical que deve tornar-se praxe nos próximos anos. A estratégia é simples: música de graça para todos, algo que a banda inglesa Radiohead começou em 2007, com o álbum In Rainbows, disponível pela quantia que os fãs resolvessem pagar. O plano deu certo para o Radiohead, mas talvez sua inevitabilidade no mercado não fosse tão clara quanto é em 2012, em que Twitter e Facebook se tornaram condutores ainda mais eficazes de tendências. O ritmo dos lançamentos do Weeknd também aponta para um modelo inteligente. Na realidade, os três discos, cada um com nove faixas, são um só trabalho, distribuído ao longo do ano, como fez a cantora sueca Robyn, em 2010, para sustentar o hype. Trata-se de uma solução sagaz para manter-se sob o olho do público em uma era de lançamentos excessivos e déficit de atenção. O sucesso de Tesfaye foi reforçado pelo personagem misterioso criado pelo cantor. Até recentemente, não se sabia de certo quem eram seus colaboradores. Até hoje, Tesfaye se recusa a dar entrevistas (a da Billboard foi a única em um veículo de porte) e se apresentou apenas duas ou três vezes desde que ficou famoso. De acordo com a crítica do New York Times, que assistiu um desses shows no Canadá, ao vivo, o Weeknd é tão bom quanto nos discos. Trata-se de uma performance a ser conferida, pois a voz que se conhece é lapidada, não como muleta, mas como uma decisão estética, pelo software de afinação auto-tune. Mesmo assim, para o desagrado dos puristas, a sensação é a de um falsete encorpado, que volta e meia lembra Michael Jackson em suas interpretações mais lentas. Os lamentos de Michael são imitados há 20 anos pelo mainstream, mas a comparação com o rei do pop é pertinente, pois Tesfaye abre o novo Echoes of Silence com um cover de Dirty Diana, um dos destaques do disco Bad, de Michael. Mesmo com o auto-tune, o cantor não chega aos pés (ou às alturas) dos agudos de Michael, mas o fato de ter incluído o cover como a primeira música diz muito sobre sua persona artística. Nos três discos, o personagem do Weeknd é o mesmo que o de Michael em Dirty Diana, um rock star seduzido pelo glamour, que sucumbe às investidas de uma groupie e se entrega ao pecado. A interpretação desse drama pelo Rei do Pop ainda há de ser superada, mas é a força motriz do Weeknd. Suas outras influências se alinham com a elite do R&B dos anos 80 em diante: a genial vulgaridade de Prince, o viés romântico das estrelas do new jack swing, gênero de pop noventista encabeçado por nomes como Bobby Brown e Today, e os melismas de R. Kelly.

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