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É o fim de <i>Civil War</i>, diz criador da história em quadrinhos

Para o roteirista Mark Millar herói é aquele que serve ao governo americano

Por Agencia Estado
Atualização:

A maré da história mudou. Para o lado vencedor da guerra civil que assola os Estados Unidos desde maio de 2006 a mensagem é clara: só é herói aquele que obedece ao governo americano. Pelo menos é assim que define Mark Millar, autor de Civil War, um arco de histórias em quadrinhos publicado pela Marvel Comics cuja última edição foi publicada na semana passada. Para o roteirista não se deve confiar em sujeitos que se acham no direito de praticar justiça sem respaldo legal. "Você realmente gostaria que esses sujeitos fossem anônimos? Vigilantes não têm superpoderes e são ilegais. Super-heróis seriam um pesadelo", disse Millar em entrevista ao site especializado Newsarama. Uma ameaça pública devido ao tamanho de seus poderes, nas sete edições de Civil War, a população heróica da Marvel se divide a partir de uma lei do governo americano: todo super-ser mascarado deve ser registrado como um funcionário do Estado. Do contrário, caçado como um criminoso fora-da-lei. Arregimentados por dois ícones dos quadrinhos, os heróis chegam finalmente aos termos do conflito no último número: Capitão América, líder do pólo anti-registro - a Underground Resistence - entrega-se à Tony Stark, o Homem de Ferro, à frente da Registration Initiative. Mas claro, isso só acontece depois do herói patriota dar no ferroso uma das mais colossais surras da história dos quadrinhos. Tudo é superlativo Não há adjetivos suficientes para descrever a mini-série. Tudo é superlativo a começar pelo próprio nome, Civil War, referência à Guerra de Secessão Americana. Conflito que durou de 1861 até 1865 durante o governo de Abraham Lincoln, a guerra civil teve o maior número de mortos da história americana, algo em torno de 970 mil pessoas. Nos gibis, da mesma forma, radicaliza-se o confronto. Invés da questão entre unionistas do Norte e confederados do Sul agora o ponto é a divergência sobre um dos pilares da identidade americana: essência de sua tradição, fundamento do país, a quase religiosa definição de herói. Ou no caso, um "super"-herói. Quem tem razão? Apesar de buscar tratar os dois lados com imparcialidade, o homem por trás de todo enredo entrega que sua opinião sobre o assunto sempre foi muito clara: "Eu seria o primeiro numa marcha em Washington DC pedindo para que os Sentinelas (um exército de super-robôs a serviço do governo) esmagassem esses malditos pois eu não gosto de ver edifícios sendo derrubados, e como sabemos, isso ocorreu em pelo menos uma das edições." Como ser humano, disse Millar, "eu apoiaria Tony (o Homem de Ferro) o tempo todo." De forma geral e por definição, o herói de quadrinhos é um sujeito que age fora da lei porém em benefício dela. Batman, Homem-Aranha, Superman, Mulher-Maravilha, X-Men, todos, de uma maneira ou outra estão fora do aparelho legal e isso é parte daquilo que fascina os americanos há tantas décadas. No entanto, sinal dos tempos, Civil War mostrou que nos Estados Unidos pós-11 de setembro o tipo de conduta "extra-legal" é inaceitável. Alegoria política "Bom, fico hesitante de apontar qualquer alegoria política (em Civil War). Ela está lá para quem quiser ver, mas toda história que escrevo tende a se modelar mais pelas manchetes de jornais do que por quaisquer gibis que eu tenha lido", disfarçou Mark Millar, na entrevista ao site. Claro, se um gigante adormecido dá um simples suspiro tudo ao seu redor estremece em pavor. Que dirá então de uma agressão tão intensa à integridade americana como o terrorismo? Há pelo menos cinco anos, raras vezes os jornais americanos tiveram uma manchete que não falasse sobre "nação", "guerra ao terror", ou qualquer tema ligado à "segurança". Difícil negar, os quadrinhos, um dos canais mais banais do senso comum, manifesta as conseqüências culturais de uma realidade em transformação. Na histórica segunda edição de Civil War, Peter Parker, o Homem-Aranha, revela ao público sua identidade secreta numa coletiva de imprensa a favor do registro de super-heróis. Evento divisor de águas para os quadrinhos, a ficção tem uma estranha familiaridade com as determinações do "Patriot Act", sigla de "Providing Appropriate Tools Required to Intercept and Obstruct Terrorism Act" (algo como "Lei de Provimento à Aquisição de Ferramentas Adequadas para Interceptar e Obstruir o Terrorismo"). Pacote de medidas aprovadas pelo Congresso americano em 2001 e ratificada em 2006, um dos itens do Patriot Act define como "terrorismo doméstico" atividades que "envolvam atos perigosos à vida humana que sejam violações das leis criminais dos Estados Unidos ou em qualquer estado" ou que "afetem a conduta governamental através de destruição em massa, assassinato ou seqüestro." Nesses termos nada seria mais politicamente correto do que a atitude do Homem de Ferro em manter uma legião de seres super-poderosos sob os auspícios do Estado antes que suas batalhas cheguem a proporções devastadoras. É óbvio, o que está em questão não é a maneira como um gibi se inspira na realidade para criar suas histórias. Mas sim, por outro lado, aquilo que orienta a formulação de um ideal heróico. "Nós (os escritores) sentimos que o Capitão América ia vencer (a Guerra Civil) pois ele tinha 70 anos de tradição heróica nas costas, mas no decorrer da do enredo você percebe que ele está lutando contra a maré da história." Querendo atualizar o universo da Marvel, Mark Millar atesta: (O Capitão América) é aquele caubói que ainda sai por aí usando uma máscara quando todos seus amigos viraram xerifes." Guerra era legítima Talvez a opinião do autor não faça justiça àquilo que o Capitão América foi desde sua origem. Nos "bons tempos" da guerra contra o nazismo o inimigo tinha um rosto e endereço muito claros. A guerra era legítima. O projeto totalitário nazista supunha a dominação mundial em nome da hegemonia da raça ariana. Coisa de vilão profissional. "Não aceitaremos um mundo de Hitler. (...) Só aceitaremos um mundo consagrado à liberdade de palavra e expressão (...) à liberdade das privações - à liberdade do medo." Estas palavras não vieram de qualquer herói dos quadrinhos, mas do então presidente americano Franklin D. Rosevelt em 27 de fevereiro de 1939, dois anos antes dos americanos entrarem na 2.ª Guerra Mundial. Mas enquanto a política falava o primeiro golpe em Hitler foi dado pelo Capitão América em outubro de 1941, mês do lançamento da edição número 1 da revista do herói, nada menos que dois meses antes do ataque à Pearl Harbor. Novos tempos, posições tomadas, é hora de se perguntar sobre a sinceridade dos discursos. Segundo Millar, "nada que é nobre pode ser interpretado como imprudente, perigoso ou fatal." Para ele, os heróis tem uma tarefa muito clara. Ser um super-herói trata-se de tentar se superar, "e estes sujeitos querem apenas fazer do mundo um lugar melhor". Rumos da história Seja como for, o editor-chefe da Marvel, Joe Quesada, disse que os efeitos de Civil War ainda serão sentidos nos quadrinhos pelos próximos dez anos. Dentre eles, alguns pontos já ficaram claros. Os heróis que foram contra a iniciativa pró-registro foram mandados a uma tal "Zona Negativa". Instância dimensional fora da Terra, seus prisioneiros ficaram totalmente isolados do universo que conheceram. Sua única alternativa foi colaborar com seus algozes ou perecer com o passar dos anos. Qualquer parentesco com Guantánamo deve ser mera coincidência, como diria Millar. Do alto de um porta-aviões aéreo, o Homem de Ferro e seus aliados mantém um olhar vigilante sobre cada detalhe da vida humana, sempre pronto a interferir quando necessário. A verdade é que os rumos da história mudaram. O mundo que se deslumbrava diante das cores e ações de heróis mascarados parece ter se tornado menor e menos seguro. Civil War não deixa de ser uma excelente história em quadrinhos. Mas sua mensagem soa um tanto incômoda. Os heróis já não são mais como eram antigamente. Sob a guarda de uma força planetária super-poderosa. Quem garante que o mundo está em boas mãos?

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