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E no Brasil a ditadura corria solta

A direita rearmou-se e ganhou a batalha, impondo de modo globalizado o american way of life

Por Carlos Guilherme Mota
Atualização:

Diversamente da França, Estados Unidos, Alemanha e Inglaterra, desde 1964 vivíamos sob uma ditadura, que a cada dia se mostrava menos branda. Foram inúmeros os episódios de contestação ao regime, mais visíveis no movimento estudantil, com mortes localizadas - não tão vultosas e brutais como no México -, mas também visíveis nos movimentos e trabalhadores de toda ordem, sobretudo das chamadas oposições sindicais.   Havia ainda um mal-estar crescente das classes médias, no período que antecedeu o famigerado "milagre econômico". O fechamento do regime em 1968 - na verdade um golpe dentro do golpe - facilitou a adoção de uma política econômica altamente centralizada, conduzida pela autocracia de novos tecnoburocratas chefiada pelo ministro Delfim Netto, aplaudida pelos militares (os mais progressistas foram afastados desde o golpe de 1964). Para dar certo o modelo, só faltava acabar com todas a liberdades civis, silenciando o País.   Nesse quadro, o movimento de 1968 foi, no Brasil, uma decorrência do aperto crescente do regime, uma resposta iracunda e muito generosa de estudantes e jovens professores, com alguma simpatia da sociedade civil. Muitos foram para a luta armada, e morreram; outros não. Dentre os professores que simpatizavam com o movimento, incluíam-se alguns menos jovens, como Goffredo da Silva Telles, Florestan Fernandes, Antonio Candido, Cruz Costa, Pasquale Petrone, Manuel Correia de Andrade (no Recife), ao lado de professores de meia-idade, como Emilia Viotti, Dalmo Dallari e muitos outros.   O autoritarismo também grassava nas universidades, acentuando a discrepância entre o que se passava no mundo e o que era ensinado, em um regime em que os catedráticos eram mandarins perpétuos, além de "quadrados", "alienados" e "caretas", para usarmos linguagem da época. "Abaixo as cátedras", "Fora com os rinocerontes" eram lemas correntes entre nós. Em algumas faculdades e departamentos, chegamos a fazer comissões paritárias de professores e alunos para a gestão, com excelentes resultados. Os alunos foram muito lúcidos nos episódios de escolha de eventuais diretores, sempre associando competência científico-cultural com capacidade administrativa.   Os ventos do mundo traziam os sinais da profunda mudança de mentalidade, com os Beatles, Bob Dylan, Jimmy Hendrix, Marlon Brando, Rolling Stones, o Cinema Novo, os movimentos da esquerda internacional, a crítica aos Estados Unidos e a solidariedade ao povo do Vietnã, a Che Guevara e à utopia de uma outra América Latina, os filósofos Marcuse, Sartre, Foucault e muitos outros (ainda não existia esse praga dos "novos filósofos" e da "Nouvelle Histoire", nem do "coffee-break"), a psicanálise alternativa (Lacan, Reich, Laing, Jung), o uso da pílula anticoncepcional, a renovação do marxismo e novas teorias (como a da dependência). Na educação, discutia-se muito as teorias de Paulo Freire, Anísio Teixeira, Darcy Ribeiro, Florestan Fernandes, como a queda crescente da Escola Pública depois de 1964, em benefício do ensino particular. Os "cursinhos" prosperaram. Mas era na música, no teatro e no cinema que estavam as vanguardas desse tempo; bem menos, na imprensa e nas direções das universidade, com os tais catedráticos. Afirmava-se com vigor uma nova "leitura" do Brasil no Teatro Oficina, o Teatro de Arena, Caetano, Gil e Chico Buarque, Milton Nascimento e o Clube de Esquina, com novas produções de gente da bossa nova agora nas músicas de protesto, com Glauber. Um novo tempo era anunciado, despretensiosamente na canção Alegria, Alegria, de Caetano Veloso, em setembro de 1967. Prenúncio de 68, sem lenço, sem documento.   Uma profunda mudança de mentalidade, enfim, nos segmentos mais ou menos educados da população, que obrigou a uma redefinição do conceito de família patriarcal, de poder, com a relocalização do papel da mulher e dos jovens. Os idosos continuaram de fora, bem como os homossexuais e, em larga e histórica medida, os negros. Sonhava-se (ainda) com a Revolução, sem saber-se muito bem como seria, em qualquer hipótese melhor do que o status quo. Éramos mais, muito mais internacionalistas do que hoje.   Em vários países, os governos foram obrigados a se demitir, como o do Egito, Bélgica e Checoslováquia. Abalo fortíssimo sofreu o governo mexicano, quando assassinou dezenas de estudantes, revelando a face autocrática do Partido Revolucionário Institucional (PRI). Na França, o governo do presidente-general De Gaulle foi acuado, com seu ministro da Cultura André Malraux, ambos admiráveis personagens históricos. Um expoente do Partido Comunista francês, o historiador Albert Soboul (que esteve na Faculdade de Filosofia da USP, tendo sido entrevistado pelo Estado), desconheceu as determinações do PCF e saiu pelas ruas nas marchas ao lado dos estudantes. Como poderia deixar de fazê-lo, sendo um estudioso da Revolução Francesa?, perguntava Eric Hobsbawm, historiador simpático aos rebeldes de 68 e de todas as épocas.   As conexões França-Brasil eram muito maiores e melhores do que hoje, em nossa Faculdade de Filosofia em especial. Vínhamos recebendo desde sua fundação o melhor da intelligentsia universitária francesa, estávamos informados de tudo, inclusive da reação negativa do venerado Fernand Braudel ao movimento de 68, que machucava - segundo ele - a hierarquia universitária. Bobagem. Soboul era um hierarca também, como o austero Jacques Godechot, doyen da Faculdade de Letras e Ciências Humanas da Universidade de Toulouse. Godechot, historiador da Revolução Atlântica, esteve entre nós em 1967, foi convidado pelos alunos a falar em assembléia no Crusp, foi bem recebido e respeitado; esse liberal rígido escreveria um depoimento sobre 1968 em Toulouse, indicando que o movimento de 68 não era "especificamente francês, e que a França tinha sido tocada por ele depois do Brasil, Japão, Países Baixos, Dinamarca, Suíça, Alemanha, Estados Unidos, Itália, Espanha, Tunísia, México, Bélgica..."   O velho historiador percebia por toda parte o sentido da busca de uma "universidade crítica", lema da época que, aliás, esquecemos. Percebia, sobretudo, a viragem mental pela qual passava o mundo. Ou, como diríamos hoje, uma profunda mudança de paradigmas.   Revolução nos costumes ocorreu em toda parte, sobretudo nos Estados Unidos, em que predominavam os padrões conservadores, que vinham do presidente Johnson (sucessor de Kennedy, assassinado) ao reacionaríssimo George W. Bush, para não remontarmos a Truman. Lá, associado ao racismo entranhado, a caretice dominava, revelando o retorno dos Estados Unidos branco, aquela parte do país que perdera a Guerra de Secessão. O assassínio de John e Bob Kennedy, depois o de Martin Luther King, indicavam o mundo que os jovens não queriam e desprezavam. Descobria-se, outra vez, o pensamento radical progressista norte-americano, que talvez retorne agora com Barack Obama.   Diversamente do que se passava nos EUA, da Inglaterra, da França, lutávamos aqui contra a ditadura. Os que não fomos cassados em 68 tivemos que agüentar o tranco, vigiados em nossas aulas pelos esbirros do regime, e também dialogando com alunos de extrema-esquerda (alguns hoje "tucanaram") em nossos calcanhares cobrando posições. Para culminar, agora sem nossos mestres e colegas referenciais de então, como Florestan, Ianni, Fernando Henrique, Schenberg e muitos outros, como Leite Lopes, Darcy, Tiomno, no Rio, em Brasília, no Recife e pelo País afora. Caio Prado Júnior, mais uma vez, seria preso logo depois.   O movimento de 1968 trouxe várias conseqüências. Uma mudança de mentalidade, uma abertura que incluiu os costumes, a sexualidade, a dessacralização de temas tabus, diminuição dos conflitos de gerações. Na esquerda, surgiu uma nova corrente geral em ruptura com o marxismo dogmático; no campo do pensamento liberal, definiu-se uma linhagem de "esclarecidos", que se tornaram decididamente progressistas. Também os cristãos acordaram, com a Teologia da Libertação ganhando impulso, voltando seus olhos mais para as lições de Jesus do que para as hierarquias eclesiásticas. Conseqüência negativa, porém esclarecedora, foi a atualização da Direita, que se modernizou com vigor em países como a França e mesmo o Brasil, e com uma selvageria incalculável em países como Chile (Pinochet) e Argentina (Videla et allii). Em suma, a Direita rearmou-se, ganhou a batalha, aplastou em todos os países o pensamento e as formas de vida libertárias, inconformistas, impondo de modo globalizado o American way of life, sem democracia para valer em países como o Brasil. Ganhou mas não levou, pois a rebeldia continua comendo por baixo, repontando aqui e ali em filmes, músicas, salas de aula, ações isoladas.   O ano de 1968 não terminou no Brasil nem no mundo. Paradoxalmente, o AI-5 foi de certo modo benéfico, pois revelou o "Brasil profundo", com suas taras, perversões, violências. A tal da história incruenta de que falava Capistrano de Abreu e José Honório Rodrigues. As classes dominantes, senzaleiras, escoradas na História oficial e seus servidores, foram obrigadas a tomar medidas contra a História do Brasil real, que aflorou. As cassações atingiram gente do nível de Celso Furtado, Florestan, Caio Prado Júnior, alertando desse modo os mais novos, que entenderam estar vivendo o país dentro de um modelo autocrático-burguês de exclusão social e política. Pois a República que está aí é uma farsa. Por isso, os ideais de 68 tornaram-se permanentes.   O observador atento já terá notado que os movimentos libertários hoje estão descentralizados e são cada vez mais plurais. Traduzem a complexidade de uma sociedade-problema, com suas anticidades, como Rio e São Paulo. São cidade- pânico, como diria Paul Virilio.   O autoritarismo contemporâneo se encontra nesse Estado ultrapassado, nessas elites despreparadas e anti-sociais, agora engrossadas com um enxame de aspones e lumpenproletários e lumpenburgueses que desejam seu lugar ao Sol. Ou melhor, à sombra do estamento burocrático do Estado brasileiro.   A oposição pode vir de agentes da nova sociedade civil que viveram 68, que têm filhos e até netos que por certo lhes cobrarão posições. Mais cedo do que tarde. Que cada um faça a sua parte.   Carlos Guilherme Mota é prof. titular de História Contemporânea da FFLCHUSP e de História da Cultura da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Mackenzie. Escreveu Ideologia da Cultura Brasileira e A Revolução Francesa, entre outros livros

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