E comeram o fígado dos modernistas

Maria E. Boaventura expõe a reação furiosa da imprensa à Semana de Arte em 22 por 22

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Por Agencia Estado
Atualização:

Prepare-se para reviver as vaias, a apoplexia, a chuva de batatas e toda a emoção provocada pelo, talvez, maior acontecimento cultural do século 20 no Brasil - a arrasadora Semana de 22. O livro recém-lançado, 22 por 22 (Edusp), em formato idêntico, reproduz 119 artigos de jornais e revistas da época, ilustrados com charges que dão a dimensão do escândalo. Foi um rombo escavado bem no meio da comportada sociedade brasileira por um pequeno grupo de intelectuais e artistas. A autora, Maria Eugenia Boaventura, não precisou de muito espaço. Além da organização dos textos, fez o belo prefácio Chuva de Batatas com título inspirado num artigo de jornal que reproduzia os efeitos do anúncio da Semana no Teatro Municipal. O que vem em seguida é o escarcéu, o esdrúxulo e o extravagante. "Foi exatamente o que eu quis mostrar, só através da imprensa" Professora de Teoria Literária da Unicamp, Maria Eugenia pinçou o grupo liderado por Oswald e Mário de Andrade, "os semideuses bárbaros e modernos", e a reverberação de seus protestos: contra a imitação servil, as cópias sem coragem e sem talento, os falsos mitos. Deram o brado de "Independência! Originalidade! Personalidade!" Demoliram o que havia. E gastaram seis dias - de 13 a 18 de fevereiro de 22 - para virar o panorama cultural de cabeça para baixo. As ousadias já haviam começado cinco anos antes com as pinceladas de Anita Malfatti em A Boba e O Homem Amarelo. Seguiu-se pugilato, ressentimento, paixão, provincianismo e uma vivacidade que não teve similar até a virada do século. Um delírio coletivo produzido na "futorópolis". Um estouro. "Mergulhei na imprensa paulista e carioca, estava tudo lá", Maria Eugenia explica. A não interferência da autora é proposital. E rara. "Precisava mais?" O documento que ela oferece é precioso. Nada mais do que a realidade impressa. E nem é preciso a telinha para visualizar o que aconteceu. Como uma história bem paginada, 22 por 22 é dividido em prós e contras. O primeiro capítulo, Bárbaros e Futuristas, traz os prós, com abertura de Sérgio Buarque de Holanda admitindo em A Garoa "somos bárbaros! ...Avante!" Fazendo a chamada de alguns companheiros, Mário de Andrade em A Gazeta apresenta Oswald como quebra-louças e Oswald, no Jornal do Commercio, celebra o triunfo de uma revolução, auto-denominando os companheiros de "boxeurs na arena". "Carlos Gomes é horrível...Villa-Lobos é o filho comovido de seu tempo", discrimina. Menotti del Picchia delicia-se com o terremoto estético. Do outro lado vem A Consagração da Vaia, a reação dos parnasianos, dos acomodados, dos assustados com a avalanche e a revolução. Quem ler apenas esse segundo capítulo fica com a impressão de que tudo não passou de "pagodeira de moleque", uma "ceia carnavalesca", um "borrão a esmo". Esta é uma das lições do livro de Maria Eugenia: as muitas faces da verdade estampadas na imprensa. Para a turma do contra, "os patetas da semana futurista só tinham em mente a nota do escândalo". São "tristíssimos palhaços", clowns da arte que, do "vazio da sua nulidade", cospem e babam sobre o passado. Os jornais que "agasalharam" a semana futurista, como o Correio, passaram atestado de "sandice e miséria moral". Os que se calaram tornaram-se "veículo da cuspinheira soltada sobre a fina flor da nossa gente". "Aquela carta é, além de tudo, o fruto mais característico da imbecilidade humana." "Salve-se a boa imprensa", apelava a Folha da Noite, "o jornal não é a bacia do barbeiro." No fim do livro há uma breve sessão da Semana em Notícia, o fato seco e puro, uma terceira via para se ler revistas e jornais e entender o que se passa. O mais suculento é o capítulo dos "contra", aos quais os modernistas reagiam às gargalhadas. "Em música são ridículos, na poesia são malucos e na pintura são borradores de telas", escreveu Oscar Guanabarino. "E depois venham dizer que o futurismo é uma coisa séria...", assinou Cândido. Muitos usavam pseudônimo como E.: "Ora o futurismo!... uma blague ou... uma choldra." Os revolucionários foram chamados de fundibulários de má sorte, desamaiçada matilha de cães, malditos, modorra modernista. Foram corridos e enxovalhados, encostados no domínio da aberração e do cabotinismo, acusados de talentos desvairados, atabalhoados com sua arte pelo avesso, suas balelas. Por uns foram enterrados vivos. Sob a assinatura Pauci Vero Electi, a Gazeta crucificou Di Cavalcanti, "molecote ainda em cueiros, pelo atentados burlescos que pratica". Brecheret foi acusado de "estéril plagiador", Anita Malfatti de ignorante da arte. Para Oscar Guanabarino, essa turma não produziu nenhuma obra sensata. Nem Villa-Lobos escapou, "ouviu assobios e gaitadas em São Paulo". Foi delírio de intelectuais que mereciam ser enterrado vivos. A turma de um lado comeu o fígado da turma do outro, como gangues de rua que usavam como arma apenas a palavra. Com uma diferença: os do contra nem sempre se identificavam. Assinavam Ataka Peró, I-Juca-Pirama, usavam apenas iniciais ou não assinavam. Outros, como Lima Barreto, confundiam a revista Klaxon com propaganda de marca de automóveis americanos e declaravam profunda antipatia contra "o grotesco `futurismo´, que no fundo não é senão "brutalidade, grosseira e escatologia". A Semana estava consagrada. Na boca do povo. Esse é o título do terceiro capítulo que traz as piadas dos humoristas. Mestre Cook gozava a modernice na Gazeta. "No sarau de amanhã tomará parte a nossa gloriosa pianista Guiomar Novais... a genial Guiomar resolveu intervir na Semana de Arte. Giomar ficará no piano de cauda... sem teclado." Até o Estado anunciava: "Precisa-se de um moço honesto que saiba fazer versos futuristas. Exige-se um atestado de ignorância." O livro é para ler e reler, deleite puro.

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