Dúvidas movem montagem de Fernando Kinas

Nova peça do diretor, Tudo o Que Você Sabe Está Errado, estréia em São Paulo; pensamento do filósofo René Descartes dá o tom da encenação

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Por Agencia Estado
Atualização:

É preciso pôr em dúvida, pelo menos uma vez na vida, todas as coisas que acreditamos ser verdade. O pensamento cartesiano, constante no ilustre Discurso sobre o Método, dá o tom à nova montagem de Fernando Kinas, diretor que mora em Curitiba e é conhecido por algumas experiências ousadas no campo dos gêneros e das tecnologias cênicas. Depois de R, Um Artista da Fome e Carta Aberta, o diretor mostra em São Paulo Tudo o Que Você Sabe Está Errado, uma colagem de textos que elegem a dúvida como provocação à política, à religião, à sexualidade e aos hábitos cotidianos. Depois de temporada em Curitiba, onde estreou em julho do ano passado, a peça terá três sessões no teatro do Sesc Pompéia, de hoje a domingo. Kinas faz interagir em um hora e 40 minutos de espetáculo um séquito de pensadores, da filosofia ao teatro, passando pela poesia, de René Descartes a William Shakespeare e Georg Büchner, incluindo o poeta Augusto dos Anjos. Nas passagens das cenas, os atores apresentam números de mágica e coreografias musicais. "Não se trata de um espetáculo multimídia; prefiro dizer que ele é múlti, de multiplicidade", avisa o diretor brasileiro de 34 anos, formado em psicologia no Brasil e pós-graduado em estudos teatrais e artes e espetáculos na Sorbonne Nouvelle, Paris 3. Partindo do desejo de refutar idéias aparentemente irrefutáveis, o espetáculo harmoniza trechos das peças Hamlet (a relação ambígua entre a razão do Estado e a razão cotidiana), de Shakespeare, e Woyzeck (a "despossessão" radical do homem proletário), de Büchner, e passagens do livro Princípios de Filosofia, de Descartes. Dezenas de provérbios e ditos populares como "Foi deus que quis" ou "Pau que nasce torto morre torto" ganham voz, bem como a poesia de Augusto dos Anjos, que realça o relativismo do que é considerado certo, como no famoso poema Versos Íntimos: "O beijo, amigo, é a véspera do escarro/A mão que afaga é a mesma que apedreja." Álibi - O papel fundamental sobre o eixo de ações da peça é exercido pela dúvida cartesiana, confrontada com a razão escolástica e os sentidos enganosos. "Descartes foi o álibi do pós-renascimento, indagando sobre a validade do pensamento em prol de se viver melhor em sociedade", diz Kinas. É irretocável o pensamento cartesiano, utilizado como fagulha do espetáculo: "É preciso colocar em dúvida, uma vez na nossa vida, todas as coisas que acreditamos serem verdade." As cenas também recorrem a Brecht, pela "brincadeira". "O público sabe o tempo todo que está num teatro. Não propomos o ilusionismo e até brincamos com esse conceito, utilizando mágica e dança", atesta. No elenco estão Mauro Zanatta (ele vive os atormentados Hamlet e Woyzeck), Marísia Brüning, Clóvis Inocêncio, Simone Spoladore, Chris e Marcelo Munhoz. A sonoplastia do espetáculo contou com a colaboração de André Abujamra, o líder da banda Karnak. Em 1997, Kinas montou R, um espetáculo multimídia que colocava o pensamento de Einstein na berlinda, e o público no meio de um confronto entre a tela de cinema e monitores de vídeo, sob um bombardeio de imagens, ora sincrônicas ora independentes. No ano seguinte, Kafka manteve-se na mira, com a recriação do conto Um Artista da Fome, misturando o dramático ao épico. Carta Aberta, de Denis Guénon, montada em 2000, inaugurou a linguagem de peça-conferência. Profundidade - O diretor queria manter no Sesc Pompéia a mesma disposição de público do teatro Cleon Jacques (Parque São Lourenço), em Curitiba, com o frente a frente, onde o espectador reconhece o outro espectador. Mas, por causa da profundidade do palco do Sesc Pompéia, optou por fechar um dos fundos do palco, mantendo uma face de platéia. No hall do teatro, haverá um objeto cinético do artista plástico Cláudio Alvarez, propondo ao público uma brincadeira com ilusão de ótica. No domingo, após o espetáculo, haverá debate entre elenco e platéia. O programa da peça é um destaque à parte: nele, o público lê epígrafes célebres, como a do filósofo e matemático Pascal: "O último passo da razão está em reconhecer que existe uma infinidade de coisas que a transcendem." Ou do cineasta russo Andrei Tarkovski: "A função específica da arte não é, como comumente se imagina, expor idéias, difundir concepções ou servir de exemplo. O objetivo da arte é preparar uma pessoa para a morte, arar e cultivar sua alma, tornando-a capaz de voltar-se para o bem." Difícil é duvidar de quem duvidou tão bem. Tudo O Que Você Sabe Está Errado. Textos de vários autores, entre eles Shakespeare e Augusto dos Anjos. Direção Fernando Kinas. Sexta e sábado, às 21 horas; domingo, às 18 horas. R$ 10. Sesc Pompéia. Rua Clélia, 93, tel. 3871-7700. Até domingo.

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