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Dulce Maria Cardoso aborda a descolonização no romance O Retorno

A escritora portuguesa participa da mesa 'Em Família', com Zuenir Ventura e João Carrascoza, na Flip

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Por Redação
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Antes da chegada de 1975 quase não se ouviam tiros em Luanda. Também era raro o martelar nos contentores que em poucos meses partiriam com os despojos de meio milhão de brancos obrigados a regressar à metrópole. No dia 31 de dezembro Rui ainda podia dançar ao som de A Banda e acreditar que aquele seria o melhor ano da sua vida. Ele, sua família e vizinhos construiriam a nação mais rica do mundo e deixariam de ser "portugueses de segunda". Mas os tiros e os morteiros logo vieram e o desmentiram. Nada foi como antes depois que a banda passou.

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É do adolescente Rui a voz inquieta e excepcionalmente vívida de O Retorno, quarto romance da portuguesa Dulce Maria Cardoso, que participa neste sábado, 7, às 15 h, na Flip, da mesa Em Família, com Zuenir Ventura e João Carrascoza. Nascida no norte de Portugal, a escritora, ainda bebê, emigrou com os pais para Angola. Onze anos depois, fez parte do mesmo fluxo da abrupta descolonização que arrasta o narrador do seu livro mais aclamado.

O relato do jovem retornado começa no dia da partida. Lee e Gegé, seus melhores amigos, foram muito antes para o Brasil e a África do Sul. O pai pretende atear fogo à casa para que os "pretos" que reconquistam Luanda não a invadam. A irmã Milucha tenta decidir que fotonovela levará consigo. D. Glória, a mãe, fala das sobras do almoço como se não fosse a última refeição que serve ali. Já não resta nenhuma vizinha para estranhar a sombra azul e o batom rosa com que colore o rosto, e comentar maldosamente o seu "problema". Dentro de casa, pode-se mencionar o saco de remédios onipresente, não "os demônios" que tentam controlar. "A doença da mãe e esta guerra que nos faz ir para a metrópole são assuntos parecidos pelo silêncio que causam", resume o narrador.

O pai resistiu o quanto pôde e a permanência é a cada dia mais perigosa. O tio Zé, que os levará ao aeroporto, demora a chegar, e agora qualquer atraso pode significar um nome a mais na lista dos desaparecidos veiculada na rádio antes da novela. O tio é a desonra da família porque fica para lutar ao lado dos negros e faz "porcarias" que não devem ser feitas entre homens. Tudo o que o pai diz sobre o tio, os "pretos", Angola e a metrópole é lei para o filho.

Contudo, a família de Rui partirá cindida. O pai fica para trás e ninguém pode responder se voltará algum dia. As perdas da mudança, que não são poucas, se apequenam diante de um pai desaparecido. Eles pouco sabem sobre o que significa "ser um retornado" - e é isso que serão a partir de agora.

Uma sigla onipresente assume parte do papel paterno: IARN, o Instituto de Apoio ao Retorno dos Nacionais. Graças a ele, o adolescente, a irmã e a mãe estão entre os mais de 300 retornados a ocupar um hotel de luxo em Estoril. O quarto, dividido pelos três, será sua casa por mais de um ano.

Na metrópole, Rui não encontra "cerejas grandes e luzidias que as raparigas põem nas orelhas a fazer de brincos", mas um limbo obscuro pelo qual se embrenha. Tal percurso pode ser experimentado pelo leitor não apenas a partir do enredo, mas sobretudo pela potência extraordinária da linguagem desse romance. A diretora do hotel com suas joias e ares de enfado, a professora da escola que se recusa a lhe chamar pelo nome, a piscina que logo esvaziam, as filas intermináveis para refeições ruins, a desconfiança dos locais, o desdém dos que também vieram das colônias e, por viverem em casas e não em quartos de hotéis como refugiados, são "outro tipo de retornados", tudo em torno aproxima Rui da concretude de sua condição. Ele é apenas mais um destroço das ruínas do império que chega ao fim, "um império cansado, a precisar de casa e de comida, um império derrotado e humilhado, um império de que ninguém queria saber".

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É preciso crescer, aceitar que o pai que não retorna é um pai morto, aprender a lidar sozinho com os demônios da mãe, descobrir que o amor não se restringe a afrouxar o sutiã das raparigas, e o desejo não se submete à ética e à amizade. E é preciso mentir: que o marido ficou a "tratar de uns assuntos", que houve uma moto e um aspirador de pó quando só haviam promessas e sonhos, que não se é aquilo que machuca.

A escrita de Dulce Maria Cardoso tem força rara, faz vidas brotarem das páginas em profusão. Rui e todos que atravessam seu percurso deixam de ser peças de uma trama para povoar nossos dias, como se fossem partes de nós mesmos.

MANOELA SAWITZKI É FICCIONISTA, AUTORA DO ROMANCE SUÍTE DAMA DA NOITE (RECORD)

 

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