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Coluna quinzenal do escritor Ignácio de Loyola Brandão com crônicas e memórias

Opinião|Duas noites espantosas

Fomos devorados pelo filme do Glauber. Espantoso, sem seguir as regras de edição e de sequência de tempo

Atualização:

Não fosse a crônica de Sérgio Augusto, eu passaria batido por uma noite histórica. A da estreia em São Paulo de Deus e o Diabo na Terra do Sol, em 1964, antes do golpe. Foi no Cine Windsor, na esquina da Avenida Ipiranga com a Rua do Boticário. Na época, uma das salas de luxo do centro. Hoje, nem sei se aberto, depois de total decadência e muitos pornôs. O filme chegava precedido pelo mito Glauber Rocha. Dele se pode dizer que foi mesmo gênio, e para mim basta este filme que estourou minha cabeça e a de todos os jovens que estavam naquela sala, ansiosos. Noite comparável foi a estreia de Doce Vida, de Fellini, no cine Coral. Nas duas, estava a plateia que frequentava a Cinemateca, os cines Coral, Jussara, Bijou, Apolo, assistia aos festivais de cinema com o uniforme da época, calça e blusão jeans. A noite de Glauber foi de rebeldia. O complemento nacional era do Primo Carbonari com seu Amplavisão Filmando Ao Brasil Vai Informando. Com toneladas de matérias pagas oficiais e chatas, Primo não “combinava” com aquela noite da intelligentzia rebelde, daquela juventude “remplie de soi-même”, ansiosa pelo novo, intelectuais que se achavam. Veio portentosa raiva que só terminou quando interromperam a projeção.  Daquela noite, lembro-me dos nossos gurus Almeida Salles, Paulo Emílio, Rudá de Andrade, Jean-Claude Bernardet, Caio Scheiby, Capovilla, Roberto Santos, João Batista de Andrade, Rogério Sganzerla, que se casaria com a mulher que todos desejávamos, Helena Ignez, musa loira de minha coluna de cinema (a morena era Joana Fomm), depois minha amiga. Naquele momento, ampliou a veneração que tínhamos por Odete Lara, que se tornou cult, palavra que ainda não existia na gíria intelectual.

Cena do filme 'Deus e o Diabo na Terra do Sol', de Glauber Rocha Foto: Copacabana Filmes

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Fomos devorados pelo filme do Glauber. Espantoso, sem seguir as regras de edição, sequência de tempo, ele nos mostrava que um filme (ou livro – para mim) era liberdade, rompimento, era tudo de acordo com aquela época política fervente que deu no que deu. A linguagem é aquilo que você quer que seja, nos disse Glauber. Ficamos maravilhados, aplaudimos e na saída nem tínhamos o que dizer, impactados. Carbonari circulava raivoso, querendo bater em todos que sempre o criticavam. Assombrados, esticamos nos lugares habituais, Paribar, Jeca, Clubinho dos Artistas, Barbazul, Gigetto, Redondo, assombrados. Eu estava com os primeiros momentos do meu romance Zero na cabeça e defini a estrutura, ao lado de Oito e Meio, de Fellini. Depois, eu me encontrava com Glauber certas manhãs de domingo na Telefônica da rua Sete de Abril, de onde ligávamos para nossas mães, eu Araraquara, ele Salvador. Dei um Zero para ele. É um livro glauberiano. Ele se foi aos 42 anos. Nunca soube se leu. 

* Ignácio de Loyola Brandão é jornalista e escritor, autor de Zero e Não Verás País Nenhum.

Opinião por Ignácio de Loyola Brandão
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