Duas décadas sem a voz de Beckett

Há 20 anos morria o criador de 'Esperando Godot', que vai ser homenageado em 2010 com novas traduções

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Por Antonio Gonçalves Filho
Atualização:

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 Samuel Beckett está morto há 20 anos. Oficialmente, ele parou de respirar no dia 22 de dezembro de 1989, aos 83 anos, mas esse é apenas um dado para burocratas. Beckett está mais vivo que nunca. Mesmo tendo surrupiado uma frase de

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A Vida É Sonho

, de Calderón de La Barca, para dizer, em 1969, que o delito maior do homem é o de ter nascido, Beckett não conseguiu realizar seu maior intento, o de ter sido um natimorto e se livrar do peso de uma visão epifânica no quarto da mãe. Foi em 1945, em Dublin, que seu futuro literário lhe foi apresentado como num filme, no qual o dramaturgo irlandês, antes de criar

Esperando Godot

, se viu como um autor condenado a escrever sobre a própria experiência existencial - e de modo tão subjetivo que poucos seriam os eleitos a entender a mensagem cifrada de um literato agraciado pelo dom da clarividência, mas amaldiçoado com o peso da ignorância - e o Nobel de literatura de 1969, que não foi receber.

 

Por que alguém, afinal, premiaria uma vida marcada pelo absurdo e ainda justificaria o ato como o reconhecimento de "uma escritura que, ao tratar da degradação do homem, o elevaria"? Foi isso que Beckett fez? Não, mas foi como a Academia Sueca viu sua obra. Na verdade, se ela tivesse esperando mais 20 anos, isto é, até a morte de Beckett (1989), veria que sua obra caminhava, sim, para diluir essa espécie de mutação antropológica, o homem do século 20, num discurso literário de beleza estonteante - e incrivelmente acessível - o de um texto derradeiro Ill Seen Ill Said (Mal Visto, Mal Dito), em que Beckett finalmente se livra do peso de sua epifania. Já não eram mais suas memórias, mas apenas palavras. Belas palavras.

 

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Talvez tivesse chegado à conclusão, como sua alienada Winnie, da peça Dias Felizes (Happy Days, 1960), de que, apesar de tudo - e isso inclui estar enterrado até o pescoço e ser ignorado pelo semelhante, como a personagem da peça - tivera algum tipo de felicidade, ainda que efêmera, em vida. Dias Felizes ganha nova tradução e vai ser lançada pela Cosac Naify em 2010, a mesma editora que colocou no mercado novas traduções das peças Esperando Godot e Fim de Partida, além do primeiro texto escrito em francês por Beckett, Primeiro Amor, e ainda o ensaio Proust, um antigo estudo (de 1931) sobre o autor de Em Busca do Tempo Perdido, em que Beckett anuncia os temas que depois seriam tratados em suas peças: a solidão do homem, o peso da memória, o difícil relacionamento humano e a percepção do absurdo existencial. Para o próximo ano, a Cosac Naify ainda promete a publicação de uma Antologia Beckett, com textos críticos sobre o autor.

 

Nascido numa família irlandesa protestante, Beckett estudou no mesmo colégio por onde passou Oscar Wilde. Foi um universitário atlético (jogava críquete), ficou amigo de James Joyce em Paris e o ajudou na pesquisa de um de seus mais conhecidos livros, Finnegans Wake. Sua estreia literária, Whoroscope (1930) tem muito a ver com Joyce. É um extenso monólogo poético em que o filósofo francês René Descartes medita sobre insondáveis enigmas teológicos e a morte, enquanto espera por seu omelete matinal.

 

O ano de 1938 marca uma mudança brusca na linguagem de Beckett, provocada por um incidente insólito. Agredido por um mendigo chamado Prudente, sem motivo aparente, o escritor foi parar no hospital. Numa audiência com o juiz, Beckett perguntou ao seu agressor por que razão o havia atingido no peito e ele simplesmente respondeu: "Não sei, meu senhor. Peço desculpas." Beckett retirou a queixa. Achou que o mendigo era educado demais.

 

Situações como essa fizeram o crítico Martin Esslin (1918-2002), num esforço classificatório, incluir Beckett na categoria do teatro do absurdo. Elas povoam as peças do dramaturgo, das quais a mais conhecida é Esperando Godot. Nela, dois amigos (Estragon e Vladimir) se encontram num lugar indeterminado para esperar um ser de nome Godot. Entram em cena Pozzo e Lucky, o segundo com uma corda amarrada ao pescoço e puxada pelo primeiro. A peça tem dois atos, quase idênticos. No segundo, muda apenas a situação dos personagens: Pozzo entra em cena cego e Lucky, surdo, ambos companheiros de infortúnio de outras vidas minúsculas que se arrastam pelo planeta.

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