PUBLICIDADE

Dona Lucinha conta segredos em livro

Educada para ser moça prendada, Dona Lucinha faz sucesso como cozinheira e dona de restaurantes. No livro que lança hoje, conta a história da culinária mineira, que domina como craque

Por Agencia Estado
Atualização:

Uma panela fumegante de tutu de feijão mudou a vida de Maria Lúcia Clementino Nunes há quase 30 anos. Durante um almoço oferecido por seu marido a um empresário do setor hoteleiro no acanhado restaurante da família na cidade do Serro (Minas Gerais), Maria Lúcia foi convidada para capitanear um festival de culinária mineira em Belo Horizonte. A partir daí foi preciso multiplicar as colheres de pau, as gamelas e tachos de cobre para atender à demanda de jantares e almoços a que era constantemente solicitada. No início da década de 90, amarrou sua tropa na capital mineira e inaugurou o primeiro restaurante Dona Lucinha, nome pelo qual é conhecida essa senhora de 69 anos, dona de outras três "casas de pasto" - antiga designação mineira para restaurantes -, uma em BH e outras duas em São Paulo. Mas engana-se quem a identifica "apenas" como a primeira-dama de quitutes e passadios irresistíveis elaborados em fornos e fogões a lenha de Minas Gerais. Dona Lucinha também é prendada em história. Prova disso é o livro que lança hoje no Museu da Casa Brasileira, História da Arte da Cozinha Mineira por Dona Lucinha, escrito em parceria com a filha Márcia. A história de Minas que se lê na obra é vista a partir das velhas cozinhas das casas com seus tetos enegrecidos pelo picumã deixado pela fumaça dos fogões a lenha e onde sinhás-moças aprendiam a cozinhar com velhas pretas. Embora tenha nascido quase 50 anos depois da abolição, a menina Maria Lúcia fez às vezes de sinhazinha e muito do que aprendeu veio dos ensinamentos de Vó Luciana, filha de escravos e tida como a melhor quituteira do Serro. Guisadinhos - "Ela me ensinou receitas incríveis. A primeira coisa que a gente fazia, isso lá pelos seis ou sete anos, era guisadinho. Depois ia-se para os quitutes e doces." Como toda boa moça de família tradicional de Minas, Maria Lúcia seguiu à risca a cartilha da dona de casa exemplar a qual implicava aprender a ler e escrever, costurar e, claro, tonar-se imbatível na cozinha. Dona Lucinha não se tornou mais uma cozinheira de Minas porque sempre deu tanto valor ao que punha na panela quanto o que aprendia nos livros de história. Num baú depositava recortes e receitas que passavam de geração a geração desde que seus bisavós enraizaram-se na sede da comarca Vila do Príncipe, antigo nome do Serro, no século 18. No livro a história familiar se cruza com a história da colonização mineira e seus elementos formadores. Três culturas se misturam nos sabores e aromas da culinária, segundo Dona Lucinha: a indígena, a negra e a européia. "Quando os debravadores paulistas chegaram à região não estavam interessados em plantar, mas em descobrir riquezas. Se alimentavam do que os índios comiam, principalmente, mandioca e algumas frutas como a banana e o que conseguiam caçar". A chegada dos negros para a mão-de-obra mineradora enriqueceu a culinária local porque as escravas vieram junto. "As negras eram mágicas na cozinha pois tinham que preparar comida com pouquíssimos ingredientes", explica Dona Lucinha. Com o florescimento e a riqueza proporcionados pelo ouro e diamante estabeleceu-se em Minas uma elite branca e portuguesa que introduziu refinamento à mesa. "O gosto mineiro por doces e quitutes é herança portuguesa. Com sua chegada a culinária mineira se formou." Seu interesse pela formação histórica dos pratos regionais se consolidou em mais de duas décadas dedicadas ao ensino primário. Como professora ela descobriu a importância da alimentação para preservar a cultura e como os alunos eram muito pobres, criou uma espécie de escola agrícola no terreno do colégio onde lecionava no Serro. Em pouco tempo, mais de 400 crianças colhiam e preparavam a merenda que comiam. 11 filhos na roda - Em casa também a exigência alimentar era grande. Maria Lúcia casou-se com um primo de primeiro grau, Marcílio, e com ele teve 11 filhos. A idéia de abrir um pequeno restaurante no Serro foi a maneira de completar o orçamento doméstico e colocar os filhos para ajudá-la. O restaurante funciona até hoje, mas não serve só pratos locais. Para atender à população da cidade Dona Lucinha prepara até pizza. "Na casa de todo serrano cozinha-se o tutu, o feijão tropeiro, a canjiquinha com costelinha . Ninguém vai comer essas coisas fora de casa", diz. Para quem treme só de ouvir falar nos efeitos sobre o colesterol causados por iguarias mineiras como o torresmo e o lombo de porco, a cozinheira garante: "A comida mineira tem pouquíssimo sal e o uso de ingredientes como urucum, limão e cachaça reduzem quase a zero o nível de gordura dos pratos". Dona Lucinha sabe do que está falando. A sexagenária e jovial senhora não dispensa um copinho de cachaça durante as refeições. História da Arte da Cozinha Mineira por Dona Lucinha - Hoje, a partir das 18h30, no Museu da Casa Brasileira (Av. Brigradeiro Faria Lima, 2.705; tel.: 3032-2499).

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.