Domingo no parque

Nos últimos dois meses, apesar da minha resistência a rotinas, dei para me repetir, às vezes, nos domingos. Carrego as baterias das câmeras e pego a linha 1 do metrô até a Rector Street. Enquanto caminho até o Zuccotti Park, sei que vários passageiros que saltaram comigo têm o mesmo destino. Alguns carregam cartazes enrolados. Outros têm a expressão de turistas subindo as escadas do Corcovado. Visitantes europeus emitem um ar satisfeito de aprovação. Japoneses temperam a modéstia com olhares arregalados. O que os passageiros desta linha do metrô aos domingos têm em comum? O que os aproxima dos moradores do acampamento? Como é fácil para alguns, depois de algumas horas no parque, reduzir tudo ao capricho de desocupados, junkies e esquerdistas new age. Sim, alguns minutos confinada entre barracas são o bastante para registrar um aroma que combina a roupa não lavada com a escassez de higiene pessoal. E daí? Alguns minutos na esquina sudoeste ocupada pelos tambores são o bastante para sonhar com a bateria da Mangueira ou da Portela. E daí? Alguns minutos de conversas desconexas com os sem-teto, desesperados para pertencer a uma ordem social que os expulsou, bastam para ceder à tentação de condenar as múltiplas versões do Ocupem ao rodapé da história. Mas, espere, quem é essa mulher de 56 anos que passa os dias tricotando na calçada norte do acampamento? Ela não discursa, apenas produz luvas, toucas e cachecóis para os acampados. Seu cartaz pede o fim das duas guerras, da pena de morte e um país melhor para seus seis netos. O que há de radical nessa expectativa? E esse homem de terno que passeia pelo parque? É um analista que continua a trabalhar para uma instituição financeira mas, em 1999, foi ridicularizado e perseguido por escrever um relatório de mil páginas alertando investidores para venderem ações de bancos, depois de analisar o nível assustador de risco nos empréstimos da então crescente bolha imobiliária. Ele se declara um capitalista que gostaria de defender o capitalismo dos capitalistas americanos.

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Por Lúcia Guimarães
Atualização:

O problema está em tentar recolher sinais literais de transformação social entre as barracas cada vez mais fortificadas para enfrentar o inverno. Fazer comparações simétricas com o Tea Party à direita é outro desserviço. Nenhum grupo ligado ao Ocupem tem o apoio de conservadores como os bilionários irmãos Koch, que já doaram em torno de US$ 200 milhões para causas conservadoras.

Um comentarista comparou a lerdeza da mídia americana diante do movimento sem líderes à postura dos ditadores árabes expressando perplexidade com a varredura democrática da primavera. É um exagero. Mas vivemos em tempos de tags, categorias a tweets. Tudo deve ter seu encaixe digital e já.

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Escrevo no Dia dos Veteranos, sob o impacto do suicídio de um ex-soldado de 35 anos. A polícia não divulgou seu nome, patente ou antigo posto, à espera de notificação da família. Ele se fechou numa barraca do acampamento Ocupem Vermont e apertou o gatilho. Um terço dos americanos que estão voltando para casa das duas guerras, no Iraque e Afeganistão, sofrem de alguma aflição psiquiátrica. O desemprego entre os veteranos é 30% mais alto.

No empurra-empurra resultante da presença dos músicos David Crosby e Graham Nash no parque, na última terça-feira, eu me separei do cinegrafista e fui me embrenhar com uma câmera pelas barracas, à caça de uma foto que registrasse, naquela tarde, o encontro dos anos 60 com a rebeldia dos millenials, como são chamados os jovens de menos de 30 anos. Ao tentar pular um pequeno canteiro, fui alertada por um habitante do parque: "Não se atreva a pisar nas plantas!" Um punhado de flores quase secas eram testemunhas do avanço do outono. Meu censor sabia que estava brigando por poucas pétalas. E eu sabia que ele estava defendendo mais do que o canteiro. Ele queria que eu pisasse no parque com um novo respeito.

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