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Dois momentos de Sábato: memórias e romance recusado

A Cia. das Letras lança Antes do Fim, um relato autobiográfico do escritor argentino, e O Túnel, ficção de 1953 que inicialmente foi desprezada por todas as editoras a quem ele ofereceu a obra para publicação. Por Maria Sílvia Betti, especial

Por Agencia Estado
Atualização:

A velhice revigora o pensamento e estimula a capacidade reflexiva, e não o esquecimento, como normalmente julgamos. Essa parece ter sido a convicção que levou o escritor argentino Ernesto Sábato a escrever, aos 86 anos de idade, o relato autobiográfico significativamente intulado Antes do Fim, em 1998, e agora lançado em português. Para Sábato, apenas a arte e a criação o salvaram da loucura, conforme afirmou certa vez ao médico que lhe recomendara a psicanálise. Dono de uma carreira longa, prolífica e altamente diversificada, Sábato transitou da ciência à literatura, passando pela pintura, pela militância política, pelas angústias existenciais e metafísicas, e pela luta contra o autoritarismo, na Comissão Nacional de Investigação sobre os desaparecidos políticos. Antes do Fim é um livro autobiográfico, no qual predomina o caráter de reflexão mais do que o aspecto histórico-descritivo geralmente associado aos relatos de memórias. Sábato não se atém a minúcias de datas ou nomes: preocupa-se, antes, com o acompanhamento das idéias ao sabor dos grandes blocos associativos desencadeados pelos momentos-chave de sua vida e de sua carreira de cientista, pintor e escritor. Leitor não sistemático, Sábato afirma que sua própria formação é repleta de lacunas e construída como que de "restos de velhos templos". Embora não se mostre alheio às questões sociológicas e históricas, o autor geralmente bebe na fonte dos pensadores existencialistas, como Camus, com o qual sente uma declarada identificação. Para Sábato, a arte tem como função captar a "realidade do espírito". A militância política, exercida durante uma certa fase de sua juventude, parece ter deixado poucas marcas, muito embora ele tenha abraçado de forma integral campanhas como a de luta contra o autoritarismo, a violência e a tortura, e a de apoio à causa dos índios wichis, em solidariedade aos quais empreendeu greve de fome em frente ao prédio do Congresso Nacional. O período de aproximação com grupos comunistas e anarquistas o haviam levado, na adolescência e juventude, a engajar-se nas marchas de apoio a Sandino e de protesto contra a condenação de Sacco e Vanzetti nos EUA. Esse período, entretanto, é interrompido, já em plena clandestinidade, às vésperas do que teria sido um período de dois anos de estudos em Moscou. Preocupado com os possíveis efeitos de comentários que fizera sobre as dúvidas existenciais e políticas que o acometiam, Sábato opta por voltar à Argentina para a conclusão de seu doutorado no Instituto Físico e Matemático. Reprodução/ As antigas convicções políticas transformam-se numa difusa admiração pelo socialismo utópico e pela crença em ideais de justiça e liberdade definidos sempre em termos que pendulam entre um idealismo humanista e um certo misticismo. Para ele, a dialética aplica-se "ao espírito", e não "à natureza", e o materialismo dialético constitui-se numa "contradição", embora reconheça que se trata de uma "hipótese arriscadíssima". A visão da história como "marchas e contra-marchas" é atribuída a Schoppenhauer. A idéia de progresso só lhe parece factível no plano do pensamento puro, embora considere que "a sacralização da inteligência empurra o homem ao precipício". Sua sensibilização diante das questões sociais mais prementes é inegável: Sábato detém-se em aspectos como a concentração brutal da riqueza, a dilapidação das conquistas trabalhistas, o dilema das populações indígenas e dos sem-terra e a devastação da natureza. Por outro lado, as reflexões tecidas em Antes do Fim evidenciam uma visão essencialista e des-historicizada, na qual o "homem" possui uma essência imutável e seu infortúnio maior é o processo de dessacralização e de materialização, que o afasta de um caráter supostamente superior e íntegro. Embora frise que o ato de escrever lhe permite expressar o caos em que se vê mergulhado, Sábato não parece vislumbrar perspectivas de transformação ou de luta efetivas, o que faz que suas reflexões conduzam ao lamento em face do que considera a cisão entre o pensamento mágico e o pensamento lógico, que impossibilita, a seu ver, uma maior harmonia com o "cosmo". Mais do que a perspectiva de mobilização e de lutas sociais, Sábato preconiza o surgimento de um "Homem Novo", reafirmando assim a utopia como forma de projetar o futuro e de tentar construir uma consciência ética no presente. O Túnel, de 1953, também lançado agora no Brasil pela Cia. das Letras, foi, de acordo seu próprio depoimento em Antes do Fim, o único romance que Sábato efetivamente empenhou-se em publicar, chegando a passar por humilhações para consegui-lo. Após ser rejeitado por praticamente todas as editoras do país, o romance vem a público nas páginas de Sur, periódico com que durante algum tempo colaborou e que teve papel importante em sua carreira. Reprodução/AE O projeto inicial de Sábato para o enredo de O Túnel era o de escrevê-lo sob a forma de conto, e de dar-lhe uma natureza mais metafísica do que aquela que o resultado final, sob a forma de romance, viria a apresentar. O protagonista é Juan Pablo Castel, um pintor obcecado com a idéia de aproximar-se de Maria Iribarne - aparentemente a única pessoa a compreendê-lo plenamente em uma de suas obras mais emblemáticas. A idéia inicial, de caráter mais especulativo e metafísico, ganha uma corporeidade ficcional marcada pela presença de sentimentos contraditórios, de paixões e de impulsos inconscientes experimentados por Castel, afastando assim o romance do projeto mais densamente filosófico visado. A angústia existencial que Sábato projeta no protagonista-narrador expressa-se por meio do ciúme e adentra, assim, o terreno ao mesmo tempo trivializado e psicologizado das paixões. O desejo obcedante de ser compreendido no detalhe que considera mais recôndito e crucial de sua criação vai, aos poucos, minando a consciência e a capacidade crítica de Castel, precipitando-o numa série de percepções que, por racionais e inelutáveis que lhe pareçam, acabam por aprisioná-lo e aliená-lo, irremediavelmente, em sua solidão e loucura. A clareza cortante das idéias e a precisão com que são formulados os raciocínios tornam ainda mais perturbadora a narrativa. E é apenas para dissolvê-la e esvaziá-la que Sábato retoma, por meio de Castel, a centralidade de um sujeito-narrador que enfeixa e sistematiza, em sua própria consciência, a abordagem de um mundo acessível e explicável pelo mergulho crítico nos meandros de sua percepção de indivíduo. Antes do Fim e O Túnel são dois momentos de extremo interesse para todos os que desejam conhecer o pensamento e a criação de um dos nomes marcantes da literatura argentina recente. ANTES DO FIM, de Ernesto Sabato. Cia. das Letras, 168 págs., R$ 22,00. O TÚNEL, de Ernesto Sábato. Cia. das Letras, 152 págs., R$ 22,00.

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