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Dois bichos graúdos

Orgulhos de um repórter: ter posto Drummond e Cabral, ainda vivos, em capas de revista

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Por Redação
Atualização:

Em algum momento de minha vida de jornalista, não premeditada e ao mesmo tempo apaixonada, botei na cabeça a decisão de batalhar para que todo artista superlativo de meu tempo fosse um dia capa de revista. Pena que, na rotina tantas vezes imediatista das redações, não tenha ido à luta para emplacar resolução tão óbvia. Só em duas ocasiões fiz o que deveria ter feito com obstinação.

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A primeira foi em 1977, quando, editor-assistente da Veja, encasquetei fazer uma reportagem de capa com Carlos Drummond de Andrade. O gancho, como se diz em jargão jornalístico, perigava não se sustentar, pois 75 anos, idade que o poeta iria alcançar naquele 31 de outubro, não é marca redonda, como seriam os 70, os 80. Gancho fracote, portanto, “gancho de açougue”, no qual se pendura, por melhor que seja, coisa já sem vida. Ainda assim, insisti, tentando convencer meu editor, o José Márcio Penido, que, tendo comprado a ideia, conseguiu dobrar a relutante direção da revista. 

A batalha de convencimento da chefia não foi nada diante do obstáculo seguinte, que não dei conta de transpor: fazer com que Drummond topasse receber o repórter, num tempo em que ele não se deixava entrevistar nem mesmo por profissionais da imprensa que fossem, também, moças bonitas. Estava longe ainda aquele 9 de julho de 1980 em que, na morte de Vinicius de Moraes, Drummond deixou a toca, num momento em que uma crise de herpes facial lhe recomendava estar ainda mais recluso – e, no velório em São João Batista, com o rosto ferido e a barba por fazer, praticamente se ofereceu aos microfones. 

Admirador confesso dos modos soltos com que o amigo levara a vida, ele terá pensado, quem sabe, se, mesmo consideradas as enormes diferenças de feitio, fazia sentido seguir se recusando a mundanidades em geral e à bisbilhotice dos repórteres em particular. Quando, bem mais tarde, em abril de 1985, lhe propus essa hipótese de explicação, Drummond, previsivelmente, negou que a mudança de atitude tivesse a ver com a morte de Vinicius, e escorregou pela conversa mole de que se tratava, agora, da obrigação de participar do esforço de divulgação armado por sua nova editora, a Record. 

Em todo caso, foi meses depois, no mesmo ano da morte de Vinicius, que um dia Zuenir Ventura, chefe da redação carioca da Veja, recebeu telefonema da assessoria de imprensa da editora com a notícia de que Drummond, sim, o “urso polar”, como ele próprio se rotulara num poema, propunha a ele uma entrevista. A moça precisou ligar de novo, pois Zuenir, certo de que lhe passavam um trote, desligou. Tudo correu à maravilha, e houve então uma semana em que excepcionalmente foram quatro as tradicionais três páginas amarelas da Veja.

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O mesmo Zuenir, em 1977, tentara de tudo, sem êxito, para que Drummond me recebesse. O mesmo fizeram, a meu pedido, Pedro Nava e Fernando Sabino, amigos chegados do poeta. Não funcionou. A reportagem que foi para as bancas – a única que uma publicação não especializada de peso dedicou a Drummond ainda em vida – limitou-se a uma tentativa de desenhar o poeta pelo seu entorno, servindo-se de depoimentos alheios, sem uma só palavra sua, e o telegrama que dele recebi não chegou a me ressarcir da imensa frustração. Apenas mais adiante, Vinicius já falecido, pude estar com o poeta algumas vezes, numa delas para uma entrevista nas páginas vermelhas da IstoÉ. 

Mais bem-sucedido fui em 1987, quando ressuscitei o plano de pôr na capa de revista os grandes de meus dias, e fui bater na porta de João Cabral de Melo Neto – que, aliás, estaria chegando aos 100 anos nesta quinta-feira, 9 de janeiro –, num belo e antigo prédio na Praia do Flamengo. Já o tinha entrevistado para a IstoÉ dois anos antes, e outra vez me deparei com um interlocutor receptivo e generoso, surpreendentemente loquaz para quem destilava uma poesia tão desenfeitada. 

Ao longo de alguns dias, estive com ele ali e no apartamento da escritora Marly de Oliveira, sua segunda mulher, na Avenida Atlântica. Não houve pergunta minha a que não respondesse – até mesmo na breve passagem em que, tendo eu indagado sobre suas admirações maiores, literárias ou não, o poeta me pediu, com um gesto, que desligasse o gravador, para então abrir: o Bigode. Como assim? O Bigode, repetiu, antes de entregar: Josef Stalin. 

Não resisti, a certa altura, a lhe fazer uma provocação primária: por que, cheio de elogios para o concretismo, ele jamais escrevera um poema concreto, como fizeram Manuel Bandeira e Cassiano Ricardo, ainda mais veteranos? João Cabral não se abalou – e, na sua fala salpicada com o cacoete “compreende?” (na verdade, “comprende?”, com um “e” a menos), pingou uma observação deliciosa, quase tão substantiva quanto sua poesia: “Eu acho que o camarada não deve pintar os cabelos literariamente”. 

Às voltas, hoje, com a elaboração de uma biografia de Drummond, o grande mestre de quem aos poucos João Cabral se afastou, lamento não ter me valido da ocasião para escarafunchar a relação dos dois gigantes da moderna poesia brasileira, que nos anos 1950 passaram a trocar declarações nas quais nem sempre era possível distinguir elogio ou farpa. Para avaliar o peso de escritores e artistas em geral, por exemplo, o poeta pernambucano recorria à imagem das diferentes funções que têm os animais num mesmo carro de bois. Os que vão na frente, explicava, são bois de cambão, incumbidos de fazer o carro avançar, cabendo aos de trás, os de coice, moderar o ímpeto dos primeiros. 

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Se lhe pediam que avaliasse o antigo mestre conforme esse padrão pecuário, João Cabral sacava, como no título de um de seus poemas mais celebrados, uma faca só lâmina: o Drummond do começo era de cambão, abridor de caminhos, para aos poucos maneirar-se em boi de coice. Veneno à parte, sem um e outro não teria andado como andou o carro da poesia brasileira.

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