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Coluna quinzenal do escritor Ignácio de Loyola Brandão com crônicas e memórias

Opinião|Diga quem é você, tenha coragem

Poderia ser um trote, uma pegadinha, um telemarketing

Atualização:

Um vento alucinado percorre a plataforma da Estação da Luz, raios, uma e outra lâmpada se apaga. O som mágico do CD de Isaías e Seus Chorões, um dos grupos mais antigos do gênero em São Paulo, acaricia os ouvidos com o Tributo a Esmeraldino Salles. Felipe procura um abrigo, o celular toca, ele atende. 

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“Você?” “Sim, eu. Quem podia ser?” “Outro.” “Que outro? Estou sozinho.” “Há sempre um outro. Que não vemos, nos vigia.” “Quem está falando? Para quem você ligou?” “Para você, não está claro?”

Silêncio. Felipe hesitava. Poderia ser um trote, uma pegadinha, um telemarketing. Coisas estranhas acontecem hoje nos telefonemas. Dia desses ele atendeu uma voz que dizia ser de um amigo. Só que o amigo estava morto há 20 anos de cirrose. Tinha bebido até o minuto final, auxiliado pelas enfermeiras que levavam a bebida e a escondiam sob a cama. Por piedade, era o último prazer de um ser humano. Pensou em desligar, mas ficou curioso.

“Sim, para mim. Mas quem sou eu?” “Se você não sabe, não é a mim que deve perguntar. Será que nunca se encontrou. Jamais encontrou seu eu?” Agora, o diálogo tendia à psicanálise superficial, a livro de autoajuda. “Sei quem sou. Ninguém sabe de mim mais do que eu.” “Não é verdade. Tanto que até agora não respondeu quando indaguei: quem fala. Tenha coragem. Quem fala?”  “Acha que me pega?”  “Não disse nada, só quero saber quem fala?” “Com quem você quer falar?”  “Com você?” “Mas quem sou eu?” “Está vendo? Você nunca se encontrou, Ainda se procura.” “Isso meu amigo é coisa de toda a humanidade. Agora, de todos os brasileiros. Nós nos procuramos desde o dia em que nascemos. Nascemos perdidos e procuramos saber quem somos desde o primeiro minuto, desde o primeiro sopro, o primeiro grito.” “Vê como tenho razão? Você desconversa, escorrega, parece vaselina. Do que foge? Do que tem medo?” “Vou desligar.” “Poupo o seu esforço, desligo eu, você não teria coragem.” “Neste país, perdemos a coragem, a força.”

O homem desligou. Felipe ficou com o celular na mão por longo tempo. Olhou o número. Desconhecido. Tentaria ligar outro dia. Para que se preocupar? Afinal, nesses tempos que correm, ninguém neste Brasil sabe quem é, foi, será. Se é que vai ser.

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Opinião por Ignácio de Loyola Brandão
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