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Diário de Canudos Parte 1 - A Chegada

Vista assim à noite, só pelas luzes, é uma cidade bem pequena Canudos

Por Pascoal da Conceição
Atualização:

É madrugada de segunda para terça-feira aqui em Canudos. Há 110 anos, Euclides da Cunha esteve por aqui enviado por este jornal para ser o correspondente de guerra. Agora, minha missão é mandar para o mundo notícias da paz que a guerra do teatro vem plantar nesta terra ignota.   Amanhã, vou cedo para Monte Santo em romaria com todo o elenco da peça. Passaram por mim na rua, me convidaram, então daqui a pouco, cinco e quinze da manhã, o ônibus me pega no hotel e eu vou.   O hotel é da dona Joselina. Chegamos, a comida estava à mesa, não deu para resistir e aceitei o convite. Arroz, feijão, cuscuz, ovo, farinha e uma especiaria da terra: carne de bode. É carne seca, salgada, seca no sol, tem um gostinho de queijo de cabra.   Aliás, quando você vem vindo na estrada, já vê pelo caminho umas gaiolas quadradas e, em volta, abertos secando ao sol, os bodes esticados. Tem bode e tem carneiro também, sempre com umas tabuletas gigantes oferecendo o pitéu. Dona Joselina diz que tem zero de colesterol. Comi e gostei. (Pra quem começou o dia comendo barrinha de cereal, bolachinha e goiabinha no avião, terminei no lucro!) Foram quase 400 quilômetros, de Salvador até aqui, a maior parte deles pela BR 116. Feira de Santana, Serrinha, Jorro, Jorrinho, cidades, povoados dos quais não guardei o nome até chegar em Bendengó, aquela cidade onde caiu acho que o décimo maior meteorito do mundo, que está agora no Museu de História Natural do Rio. Em Bendengó, vira-se para a direita, isso quem vai pro norte (para a esquerda é Uauá), é andar mais uns 20 quilômetros de estrada de terra e você está em Canudos. Cheguei pelas nove da noite, hora de teatro. Tudo escuro, sem lua, um breu, bem parecido com aquele momento nas salas de teatro, depois do terceiro sinal, quando apagam todas as luzes, vem aquele silêncio, o cio sagrado, antes de cantar os ritos de Baco. Fiquei com a impressão de que estava passando por um portal. As próximas luzes já eram as luzes de Canudos.   Vista assim à noite, só pelas luzes, é uma cidade bem pequena. Fui até o campo de futebol onde vai ser feito o espetáculo Os Sertões. O campo fica no fim da cidade. Sobre o chão de barro foi levantado um templo, uma grande sala de teatro em estruturas de ferro, arquibancadas para 800 pessoas, aproximadamente 600 metros quadrados de área com 15 metros de altura, com camarins construídos dos dois lados. Levei um susto com o tamanho, como deve ter sido o daqueles que viram o meteorito vindo do fundo do cosmos para Bendengó. Tem camarins, com chuveiros de água quente e fria, uma sala só para as 100 crianças do projeto P.E.T.I. (Programa de Erradicação do Trabalho Infantil) que vão participar da peça com as crianças do Bexigão. Tem praça de alimentação feita com barraquinhas de lona coloridas, fora do estádio para não atrapalhar o espetáculo.   Onze carretas com cenários, luzes e figurinos, três geradores, uma estrutura de cem toneladas de ferro que, colocados em linha, dão cinco quilômetros de canos de estrutura, técnicos, elenco, produtores, pessoal do site, das fotos, você encontra o povo do teatro passeando pela rua, nos hotéis, nos bares, na prefeitura que virou a central de produção, habitando as casas que estão sendo oferecidas pelos habitantes da cidade.   O ritmo da produção é imenso nos preparativos que vão dar no espetáculo. Os números afogam a cabeça da gente com a grandiosidade do trabalho, mas, mesmo tentando, não conseguem contar o prodígio que está se materializando aqui. É ver pra crer. Meu coração está apertado, pequenininho. Tem horas que dá vontade só de chorar e pronto. É tão forte, tão grande, tão importante pra nós todos... Respiro: está tudo teatro, tudo sagrado e mansinho, religioso, como convém aos apaixonados pelo que fazem. Evoé! Amanhã tem mais.   PASCOAL DA CONCEIÇÃO, CORRESPONDENTE ESPECIAL DE ‘CULTURA E PAZ’ PARA O JORNAL O ESTADO DE S.PAULO   P.S.: Tudo está na internet, é só clicar www.teatroficina.com.br. Pra quem não pode vir, os espetáculos serão transmitidos ao vivo pelo site do Teatro Oficina.

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