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Luzes da cidade

Diálogos da vagina

Roseanne Barr e Samantha Bee, dois insultos, sim, mas dois alvos diferentes

Por Lúcia Guimarães
Atualização:

Duas comediantes e dois insultos tiraram das manchetes a notícia mais grave divulgada nos Estados Unidos na semana passada. Enquanto o governo federal continuava insistindo que o furacão Maria matou 64 pessoas em Porto Rico, há oito meses, um estudo da Universidade de Harvard estimou o número de vítimas em “pelo menos” 4.645. Estimou porque o número exato nunca deve ser descoberto. Ou seja, o furacão matou mais americanos do que o 11 de setembro.

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Não é preciso grande esforço mental para observar que tal calamidade, se não tivesse ocorrido numa ilha habitada, na maioria, por pessoas pardas, provocaria maior comoção, luto nacional e cobrança de autoridades. Mas, quem ouvisse rádio ou estivesse ligado em canais de notícias no cabo, ficaria muito mais informado sobre a comediante Roseanne Barr. E, em seguida, a comediante Samantha Bee.

Primeiro, Roseanne, que teve sua sitcom cancelada pela rede ABC, de propriedade da Disney, horas depois de comparar Valerie Jarrett, ex-assessora negra de Barack Obama, a um macaco. Ela se desculpou, botou a culpa num tranquilizante, mas tem um longo rastro de comentários racistas, homofóbicos e costuma promover conspirações. O programa Roseanne, um clássico da TV americana exibido primeiro entre 1988 e 1997, tinha sido ressuscitado em março e estava escalado para uma nova temporada no segundo semestre. 

Enquanto continuava a ignorar a tragédia de Porto Rico, o tuiteiro-chefe da Casa Branca voltou à rede social para, previsivelmente, tornar o episódio mais um caso sobre ele. Cadê as minhas desculpas por me tratar tão mal, ABC?, cobrou o frágil chefe de Estado. 

Já Samantha Bee sapecou em Ivanka, a primeira-filha, o epíteto “vagina incompetente”, ao final de um monólogo sobre a nova decisão de separar crianças imigrantes de mães e pais na fronteira. Mas não usou “vagina” e sim c*@t, uma variação chula. Gritaria na rede social e Samantha pediu desculpas a Ivanka. Mas a Trumplândia queria sangue. O canal TBS, que exibe o programa semanal da comediante, é parente corporativo da CNN, o canal que mais recebe insultos presidenciais. O homem voltou à carga no Twitter e cobrou a demissão da comediante, impermeável à ironia de que seu partido não aprova a intervenção do governo numa empresa privada.

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Como Roseanne e Samantha são desconhecidas no Brasil, esclareço um detalhe importante: a volta da trumpista Roseanne foi fruto da decisão da ABC de cortejar os eleitores que passaram 2016 vestindo camisetas impressas com o rosto de Hillary Clinton e a palavra c*@t. Já Samantha Bee fez campanha para instalar a primeira vagina no Salão Oval. 

A guerra cultural funciona a favor da direita há décadas. Se você assistir ao canal da NRA, o poderoso lobby das armas, vai notar que a programação não é sobre lei ou ordem, mas sobre identidade. E a identidade faz com que Roseanne seja absolvida e Samantha seja condenada por fãs do presidente que, segundo testemunhas, chamou a então ministra da Justiça em exercício Sally Yates, de c*@t, antes de demiti-la.

Na mídia, críticos liberais do presidente, acusaram Samantha Bee de enfiar o pé na jaca do discurso de ódio. O discurso público nos EUA é testado sob a Primeira Emenda da Constituição, que protege a liberdade de expressão. Mas a Constituição não criminaliza discurso de ódio. Criminaliza apenas discurso de ameaça que possa conduzir à violência, por exemplo, “você parece um macaco e eu vou aí quebrar sua casa”.

Não defendo a escolha de palavras de Samantha Bee. Mas noto algo que costuma ser convenientemente ignorado pela turma que finge criticar o politicamente correto enquanto usa a expressão como código para manter o privilégio de atacar quem tem menos poder. Dois insultos, sim, mas dois alvos diferentes.

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