Diálogo com Genet na corda bamba em 'O Fonâmbulo'

João Paulo Lorenzon interpretará monólogo baseado no poema do francês para um acrobata

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Por Antonio Gonçalves Filho
Atualização:

Lorenzon interpreta o equilibrista no monólogo. Foto: Tiago Queiroz/Agência Estado

 

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SÃO PAULO - Poema sobre a solidão moral do artista, escrito em 1957 pelo francês Jean Genet, um dos mais revolucionários dramaturgos do século 20, sua adaptação teatral, O Funâmbulo chega aos palcos brasileiros pela primeira vez no dia 11 de setembro, no Sesc Paulista. O monólogo, traduzido por Fátima Saadi, exigiu do ator João Paulo Lorenzon muito mais que equilíbrio na hora de andar sobre o arame, como fazia o garoto marroquino Abdallah Bentaga, a quem Genet dedicou o poema. O ator teve de viajar a Paris, reunir os três detentores dos direitos de O Funâmbulo - que não moram na França - e dançou na corda bamba para conseguir montar a peça, dirigida por Joaquim Goulart, do Núcleo Caixa Preta, companhia por ele fundada.

 

"Nunca vi tanta exigência para liberar direitos de uma peça", conta o ator, que, aos 30 anos, já enfrentou outro monólogo difícil, Memória do Mundo, inspirado no universo literário do escritor argentino Jorge Luis Borges. "Tive de provar que sabia andar sobre o arame, fazer teste vocal, enviar um croqui do cenário e um dossiê das peças que fiz", conta Lorenzon. Todo o esforço será colocado à prova na curta temporada da peça (11 de setembro a 1º de novembro), quando Lorenzon vai ensaiar curvetas, dar saltos mortais e transmitir para o público a bela lição que Genet deu a seu amante Abdallah, um garoto de 18 anos que ele conheceu em 1955, quando acabara de concluir sua peça Os Negros. O garoto marroquino foi seu grande amor, segundo o biógrafo do escritor, Edmund White. Na velhice, Genet falaria de

Abdallah e de Jean Decarnin como as duas figuras mais importantes de sua vida, garante White.

 

Genet, de fato, assumiu Abdallah e sua família pobre. Filho de um acrobata argelino com uma alemã semiparalítica, ele pertenceu a uma companhia itinerante de circo, arriscando a vida em troca de comida e abrigo. Quando o dramaturgo o conheceu, Abdallah morava numa barraca com um amigo muçulmano, Ahmed. Ele passou a sustentar o garoto semialfabetizado e sua mãe, vendendo os direitos de um roteiro cinematográfico, Le Rêves Interdits, para pagar suas aulas de equilibrismo. Espelho um do outro, segundo o diretor francês Pierre Constant, que dirigiu a peça em 1988, "eles se recriam numa fascinação recíproca".

 

Um completa o outro, conclui Constant, reforçando a observação de White sobre a equivalência do risco enfrentado pelo funâmbulo no cabo de aço e o perigo enfrentado pelo artista ao desafiar os códigos morais da sociedade em que vive.

 

A peça, assim, é ao mesmo tempo um poema de amor e uma reflexão sobre a dramaturgia circense e teatral. O diretor Joaquim Goulart, ex-ator da companhia de Gerald Thomas e do Centro Grotowsky, que trabalhou sob a direção do russo Hryroij Hiadji, parece habituado a desafios. No ano passado ele encarou mais um: a montagem de Bartleby, adaptação do texto de Melville. Dessa figura arquetípica e sempre nas sombras, que prefere não participar da encenação social, ao funâmbulo de Genet - "encarnação luminosa do erotismo" -, a evolução é evidente.

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Em todo caso, em ambos persiste certa obsessão tanatológica, como se a morte fosse paradoxalmente um ato de criação. "Não há antecedentes na dramaturgia de uma história como a de Genet e Abdallah, que se matou aos 28 anos", diz Goulart, comentando a sequência em que o dramaturgo alerta o acrobata sobre a morte que o espera: "Se você cair, merecerá a oração fúnebre mais convencional: poça de sangue e ouro....Você não deve esperar outra coisa".

 

Entre Bartleby e O Funâmbulo, outra coisa em comum entre ambos, conclui o diretor Joaquim Goulart, é que eles dançam para si mesmos, não para os outros. O último tem ao menos seu momento de transcendência na corda bamba, ao contrário do escriturário de Melville, que vive uma vida minúscula, incomodando a sociedade por sua insistência em não participar dela. "Acho uma filosofia bonita essa de ensinar ao equilibrista que ele não tem de se quebrar para flutuar", completa o ator João Paulo Lorenzan, que largou a profissão de advogado para fazer teatro, aprendendo inclusive a andar no arame com acrobatas de circo. "Temos de aprender a voar, não a cair", diz, não desprezando a carga alegórica de sua frase.

 

O hábito de falar por metáforas se deve ao conteúdo poético de O Funâmbulo, que só faz uma única referência indireta a Abdallah no começo, quando Genet abre a carteira e descobre casualmente um desenho que o garoto fez de uma linha reta, representando a corda bamba onde desempenharia seu número. "Não se é um grande artista sem que um grande infortúnio esteja envolvido", sentencia Genet, como que adivinhando o futuro trágico de seu protegido.

 

A obra do dramaturgo não é exatamente um mistério para Goulart. Há alguns anos ele conseguiu do próprio Genet a concessão dos direitos de Alta Vigilância, sobre um covarde que mata o companheiro de cela para impressionar seu ídolo. Experiência em contracultura ele tem: montou duas peças de Plínio Marcos.

 

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Quem foi o dramaturgo

 

Sartre referia-se ao romancista e dramaturgo Jean Genet como um santo, apesar de suas diversas passagens pela cadeia por roubo e diversos outros crimes, condenados com a prisão perpétua - pena comutada depois que o filósofo, ajudado por Picasso e outras importantes figuras da intelectualidade francesa recorreram ao presidente da República. Genet nunca mais voltou à prisão. Virou escritor, publicou suas memórias do cárcere em Diário de um Ladrão (1949) e começou a escrever peças, das quais a mais célebre é O Balcão, montada no Brasil em 1969 por Victor Garcia com produção de Ruth Escobar.

 

Antes de sua estreia teatral, Genet havia escrito Nossa Senhora das Flores (novela de 1944 adaptada para o palco) e poemas. Suas peças, de modo invariável, tratam do confronto entre proscritos e seus opressores, encenado de modo quase litúrgico.

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O Funâmbulo, de Jean Genet

Onde: Sesc Paulista - Av. Paulista, 119, Tel. 3179-3700.

Quando: de 11 de setembro a 1º de novembro

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