PUBLICIDADE

Devastada, Cultura não pode ser reconstruída com raiva e revanchismo

Se subir a rampa do Palácio em janeiro, Lula não pode atender com especiais deferências a quem o agradou; não seria vingança de quem o desagradou, mas mais punição a uma população de artistas invisíveis que não fez nem uma coisa, nem outra

Foto do author Julio Maria
Por Julio Maria
Atualização:

Em cativeiro, estagnada e com seu maquinário de irrigação mais robusto desmobilizado, a área da Cultura não é prioridade aos governos, nunca deixou o chão na lista dos investimento da União e, quando começou a ser entendida não apenas como provedora de museus, teatros e orquestras, mas também de sistemas econômicos criativos potencializando atividades locais capazes de resolver a fome de muita gente, ela minguou ainda na gestão de Dilma Rousseff e derreteu nas de Michel Temer e Jair Bolsonaro. Nenhuma outra pasta sofreu a mesma paralisia deliberada nos últimos anos. Nem Saúde e Educação, bombardeadas duas vezes ao mesmo tempo por pandemia e gestão, passaram por tal desmonte.

Prédio do extinto Ministério da Cultura, em 2017 Foto: Elisabete Alves/Ministério da Cultura

PUBLICIDADE

A Cultura pede a maior reconstrução de um setor público no País e o fato de ter chegado às ruínas é explicado não apenas pela cantilena da falta de uma fatia de bolo maior do orçamento, que é justa, mas por ter se tornado um foco inimigo a ser abatido pela gestão atual. Ao chegar ao Planalto, em 2018, Jair Bolsonaro viu no prédio marrom do antigo Ministério da Cultura um bunker vermelho. Ali estava o foco das tropas inimigas e a máquina que abastecia um gente desprezível. Por mais popular fossem, eram aquelas pessoas que haviam tentado tudo para impedir sua eleição com gritos de “ele não” em shows, salas de cinema, teatros e redes sociais. Agora, com o poder nas mãos, o presidente foi à forra: extinguiu o Ministério da Cultura, reduzindo-o a pasta de subordinação rápida, e iniciou uma cruzada imediata contra a Lei Rouanet, que reformou seus limites para induzi-la ao coma depois de chamá-la em uma live de “maldição”.

Quatro anos depois, a reconstrução da Cultura pode ser uma realidade dentro de um possível cenário de alternância de poder, mas começa a surgir aqui uma outra questão. Se esse cenário se materializar, com Lula subindo a rampa, em janeiro, haverá um irrefreável e justo sentimento da retomada de pertencimento por parte de seus eleitores. Segundo as poucas falas de Lula sobre o assunto, a Cultura será não só realocada em um Ministério, mas também terá sua capilaridade redesenhada. Cada Estado, segundo o presidente, contará com um Comitê de Cultura, uma estrutura robusta e inchada, pensada propositalmente assim para que “ninguém mais queira acabar com a Cultura deste país”, como disse o candidato do PT.

A reconstrução da Cultura, por mais que Cultura também se faça com paixão, precisa ser técnica, estratégica e, mesmo dentro dos Estados, descentralizada – demandas que uma euforia desenfreada pelo momento histórico podem turvar. Não basta religar as máquinas em Brasília simplesmente porque elas, tal como eram antes da ferrugem, não funcionam mais. A Ancine precisa rever seus projetos de fomento ao cinema sem favorecer feudos corporativos, os meios digitais precisam inspirar um programa de braço longo que nunca existiu e os pontos de cultura precisam ser reativados. Uma horta no Capão Redondo, inscrita no programa, viabilizava-se como centro de uma roda autossustentável: os homens plantavam e as senhoras recebiam aulas de gastronomia. Além de alimentar as crianças, o grupo formava um serviço de buffet e se monetizava atendendo empresas na região. Gastronomia criativa.

Além de todos os novos mecanismos que um possível governo já deveria estar desenhando só por ser considerado possível, assessorado por uma senhora equipe de pessoas experientes que já passaram por ali, seguimos com alguns dos erros que não deveriam se repetir: a Lei de Incentivo à Cultura, além de voltar a ter o nome de Luis Sérgio Rouanet, seu criador, não pode voltar a ter brechas para desvios de finalidades – um produtor pagou até festa de casamento com verba captada pela Lei – e precisa saber como resolver a questão da captação de recursos por parte dos artistas junto aos empresários, ainda muito concentrada nos centros mais ricos de Rio e São Paulo.

Mas talvez o ponto mais delicado da Cultura de reconstrução de Lula seja o reverso da não Cultura de Bolsonaro. Se Bolsonaro baniu de aprovações na Rouanet projetos de nomes ligados ao PT e mandou pesquisar um a um antes de contratar artistas para receberem os cachês por propagandas da Caixa Econômica Federal e do Banco do Brasil, o sentimento de gratidão do petismo à sua base mais militante e ativa pode ser a sua nova perdição. Ao atender com especiais deferências a quem o agradou, aprovando projetos e aparelhando equipamentos públicos sob a trilha do “agora é a nossa vez”, ele não estará se vingando de quem o desagradou, mas prejudicando quem não fez nem uma coisa, nem outra. Ou seja, uma imensa população de artistas invisíveis.

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.