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Coluna semanal do historiador Leandro Karnal, com crônicas e textos sobre ética, religião, comportamento e atualidades

Opinião|Deuses e pizzas

Bom teatro faz alguém sair mudado da sala, purgado de si e dos males

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Atualização:

Houve um momento da história europeia em que o público de Atenas lotava o teatro para ver as inovações trágicas do texto de Ésquilo. A peça Os Persas não tratava de um fato mitológico e distante. Era sobre algo atual, que aquele público conhecera de muitas formas: a guerra entre o império de Xerxes e as cidades gregas. As personagens falavam, discutiam e elaboravam ideias de forma mais dinâmica, não apenas comentando com o coro. Era um dia de novidades: a obra não seria narrada por gregos, todavia imaginada em ambiente inimigo, em plena corte da cidade de Susa. Em clima que o futuro Shakespeare aprovaria, surge o fantasma do velho imperador Dario e a angústia de sua viúva e mãe de Xerxes, Atossa. O público deveria estar eletrizado pela avalancha de coisas inéditas. No século seguinte, o grande Aristóteles registraria o impacto da revolução teatral ali vivida.

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Ésquilo era um soldado. Havia vivido episódios que se desenrolavam naquele palco. O que o público ateniense testemunhava era uma reflexão sobre a derrota. Sim, havia o traço da vaidade dos áticos, da humilhação dos “bárbaros” invasores e o triunfo da democrática e mercantil Atenas. Usando um anacronismo do século 19, era uma peça nacionalista. Porém, a força da tragédia superava a mesquinhez da tribo naquela manhã. O teatro fazia pensar sobre história, destino, teimosia e liderança. Ainda mais: em breve a democracia grega pagaria a um cidadão comum uma verba chamada mistoforia para que o homem habilitado a votar, porém sem recursos, pudesse participar da vida pública da cidade. Assim, recebendo uma soma para participar de um debate, o grego comum aproveitava para ver teatro sobre um fato militar e político. A democracia, em seu apogeu, pressupunha educar seu eleitor. A comédia de Aristófanes apresentava o ponto de vista aristocrático e tecia críticas pesadas à mistoforia. 

É possível que Prometeu Acorrentado seja também de Ésquilo. Vendo o titã castigado pelo poder supremo de Zeus e dialogando com as penas da perseguida Io, o público acompanhava um rebelde inteligente, mais simpático do que o poder oficial constituído. Que lição! Que força tinha a educação teatral para formar a primeira democracia do planeta. Na geração seguinte, com Sófocles e Eurípedes escrevendo e tendo na plateia Péricles, Sócrates e Platão, aquelas arquibancadas marmóreas seriam um experimento único de educação para a cidadania. Sabemos que mulheres, escravos e estrangeiros, prováveis 90% da população ateniense, eram excluídos da participação pública. Mesmo assim, por alguns anos, o conceito de democracia associado à educação teatral brilhou na cidade de Atenas. 

O teatro é um prazer, claro. Muitos autores, conservadores ou não, usaram do seu talento para estimular debates políticos e sociais. Os mistérios de Dionísio, origem da experiência helênica, eram vivências transformadoras. Há algo de sagrado e catártico na tragédia. 

Catarse é um termo aristotélico (Poética) que pode ter muitas traduções e sentidos. Meu professor na USP, Francisco Murari, registrava tantas e tão variadas que eu não tinha a menor ideia ao final da aula, onde escorar minha arfante certeza. Era o triunfo aristotélico de Dionísio, creio. Há 30 anos eu ainda achava que o objetivo do estudo era a resposta correta e única. Hoje, sei que aprender é fazer boas perguntas, mais do que desenvolver certezas. 

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A literatura é fabulosa. Por algum tempo em um conto, você consegue ser transportado a um estado de consciência de reflexão fora do mundo pequeno e medíocre que nos domina. O teatro parte da beleza literária. Teatro é texto, em primeiro lugar. Ao juntar a cena (cenário, música, iluminação, figurino, etc.), porém, ele amplia de forma exponencial a literatura. Surgem novos focos narrativos que completam e aprofundam a ideia de Eurípedes. Emergem Shakespeare, Calderón, Racine, Molière, Ibsen, Brecht, Miller, Nelson Rodrigues, Maria Adelaide Amaral ou Katori Hall.

Teatro é texto (há quem não considere isso fundamental). Teatro também é cena dialogando e compondo com a escrita. Porém, teatro depende de um terceiro pilar fabuloso: a atriz e o ator. Todo artista é lindo. A beleza pode ser física, sim, mas sempre está na chama que brilha no corpo, fala, olhos e gestos do intérprete. Então o texto vive de fato e encontra um receptáculo que o redefine e confere a emoção precisa, o humor, a graça, a lágrima, a dor e o urro primal. Para mim, o grande ator é aquele que vive alguém distinto do que é, como o caso clássico de Anthony Hopkins que vive de um pacato mordomo a um genial devorador de gente. Um gesto grande ou mínimo mesmeriza a plateia. Bom teatro é uma epifania frequente, que nos retira do mundo plano, mortal e medíocre e nos arremessa longe. Bom teatro faz alguém sair mudado da sala, purgado de si e dos males, uma das muitas funções da catarse aristotélica. 

Teatro de qualidade é uma vitória quase épica da vontade de poucos. Já houve teatro quase toda a semana. Concentra-se, hoje, com sorte, de sexta a domingo. Patrocínios escasseiam e o público médio foca no passatempo pré-pizza, elegendo textos rápidos e divertidos. Vimos que a noção de cidadania estava na origem das peças clássicas. Seria coincidência que as crises da nossa democracia coincidem com as crises do teatro? A diminuição das plateias seria o sintoma da dificuldade de acompanhar uma reflexão mais densa do que o espasmo do WhatsApp? Boa quarta-feira para todos nós. 

Opinião por Leandro Karnal
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