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Deus, a máquina de escrever e o pensamento veloz

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Por Redação
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Crítica: Jefferson Del RiosDentro da vida veloz de Ferreira Gullar há sua poesia já consagrada na grandeza da linguagem e dos temas. O teórico do Manifesto Neoconcreto, figura destacada nas polêmicas estéticas e políticas que desencadeou, é também por demais conhecido. O caso aqui é do dramaturgo que, em parcerias, foi atuante em um momento político grave. Ninguém se esquece, e com gratidão, da peça Se Correr o Bicho Pega, Se Ficar o Bicho Come, escrita em 1966 com Oduvaldo Vianna Filho. Título e enredo de uma eloquência irônica e premonitória, anunciando os dias que viriam no País submetido a uma ditadura militar. Foram anos de resistência de Gullar e companheiros do Grupo Opinião, do Rio de Janeiro. Oposição que lhe custou prisão e exílio. Em um relato comovente, o poeta conta o dia em que, em Buenos Aires, ao ver na agência da Varig uma foto do Rio e suas praias decidiu, contra todos os perigos, voltar para casa. Eis o gesto sobre o qual um dia, quem sabe, escreverá.No momento, porém, há um Ferreira Gullar mais leve depois de perdas enormes. Um brasileiro que se permite lances de bom humor em crônicas, reminiscência e no atual monólogo O Homem como Invenção de Si Mesmo. Um criador sem asperezas e, no caso, meio descuidado com os recursos do gênero. Na história que inventou, um homem medita sobre a vida enquanto tenta, em telefonemas seguidos e frustrados, reatar uma complicada relação amorosa. Como se trata de divagação a esmo do cidadão nervoso com o rompimento, a pressa o leva a enfileirar pensamentos idiossincráticos sobre, por exemplo, a virtude das velhas máquinas de escrever, as irritações que a informática provoca e digressões sobre Deus.Determinados rasgos nostálgicos ou achados cultos têm lances engraçados: saudade de uma Lettera 22, alusões literárias (o personagem se chama Vicente Mezatti, o que lembra o romancista italiano Dino Buzzati) e expressões antigas como "chatola". O que nem sempre se encaixa bem é o arsenal humorístico e a vontade de divagar sobre como o ser humano se inventa e constrói o mundo em que vive. O exaltado personagem argumenta que o homem criou Deus para que este o criasse.Tanta filosofia não resiste ao telefonema final da amada, que não se pode revelar aqui. O texto está precisado de arranjos nas peripécias e de mudar o título pesadão. O ideal, se não for pedir muito, é o próprio Ferreira Gullar representá-lo naquela linha informal dos literatos intérpretes Ascenso Ferreira, Silveira Sampaio e Ariano Suassuna. Seria uma experiência interessante ver o poeta em cena numa Luta Corporal com a palavra.

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