Se levarmos esses “detalhes” em conta, descobrimos que comparar conduz a individualizar. Eu prefiro X e você Y; eu sou Z e você X. Tal destaque pode levar ao desprezo ou à ênfase no elo que, afinal, é a base do contraste. Toda comparação pode conduzir a uma competição ou a uma guerra. Não foi por acaso que os Jogos foram reinventados na Europa!
A individualização extremada leva a diferenças que podem se fixar em desigualdades. Ou, ao contrário, em diferenciações que obrigam a rever preconceitos e exclusões. Os Jogos colocam no mapa países ignorados, por meio de seus heróis. E, ao mesmo tempo, transformam desigualdades eventuais em diferenças irremovíveis. Um “detalhe” crucial da Olimpíada é o jogo entre eventos (ou “provas”) e um padrão geral – o tal “quadro de medalhas” – que reordena ou confirma nações alinhadas não mais pelo poder militar ou econômico, mas por desempenho nesse campo situado entre guerra e arte.
Como mencionei na semana passada, o esporte, como as artes, é um ponto de repouso das rotinas – das questões práticas e das tragédias. Ele não as elimina, mas as converte e, no caso de fracassos, pode agravá-las, acentuando ainda mais os radicalismos. De qualquer modo, como tudo que é programado e delimitado por um texto, palco e atores, o esporte é uma fantasia, mas uma fantasia transformada numa realidade tão séria quanto um filme musical ou martíni. Sua “glória” é um transbordamento parcial para o real. Seria maravilhoso se questões políticas pudessem ser resolvidas por meio de uma luta de boxe ou por um jogo de basquete...
De um certo ponto de vista, o campo do esporte é um experimento comparativo e uma abertura para a mudança. Aqui, dois “detalhes” se destacam imperiosamente: as regras explícitas e um uso do corpo com foco exclusivo no seu desempenho, talento e capacidade. No caso, uma refrega do atleta-herói contra o tempo, o espaço e os “estrangeiros” – esses outros que paradoxalmente não podem ser eliminados. Nesse sentido, o esporte é um ritual cujo propósito permite diferenciar iguais (todo jogo começa numa igualdade absoluta, como aprendi com Lévi-Strauss) sem, entretanto, esquecer – e isso digo eu – que as diferenciações sejam passageiras e relativas, pois tudo pode mudar numa outra competição.
Vejam a diferença: no mundo “real”, a competição promove desigualdades permanentes e naturais, satânicas ou divinas. Mas, no esporte, a contingência da derrota (e da vitória) engloba apenas as inferioridades daquela competição ou jogo. Nesta esfera da vida, não pode haver um campeonato que acabe com todos os campeonatos (como foi o caso de algumas guerras); ou um estilo de disputa definitivo. Muito pelo contrário, todo torneio tem como pressuposto um outro torneio, de modo que a série derrotado/vitorioso/derrotado seja permanentemente renovada. É muito semelhante à experiência do cantor com a música, cujas interpretações são infinitas, embora ela continue sendo a mesma música.
Um dos “detalhes” do esporte como uma esfera de significado social é que nele vitória e derrota estão em relação. Perder não é desonra. É uma “prova” do outro lado dessa moeda, sem a qual não há jogo, pois sem ela não há vitória.