Deliciosas maldades de Hollywood/Broadway

Original Story by Arthur Laurents, um livro de memórias, é poço de informações íntimas e opiniões do dramaturgo-roteirista de West Side Story e Festim Diabólico

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Por Agencia Estado
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Mesmo morando no Brasil e sem tomar muitos aviões rumo à matriz, você já consumiu um bocado de Arthur Laurents e não sabe. Laurents é um teatrólogo e roteirista americano que, de 1945 aos anos 80, teve seu nome associado a alguns dos filmes e peças mais fascinantes produzidos nos EUA. Por exemplo, West Side Story, o musical de Leonard Bernstein e Stephen Sondheim: tanto a peça de 1958 quanto o filme de 1961 foram escritos por ele - na verdade Laurents foi seu originador, com o coreógrafo Jerome Robbins. Gipsy, outro fabuloso musical (1959), com música de Jule Styne e letras também de Sondheim, igualmente teve libreto de Laurents - foi dele, entre outras, a idéia de fazer de Rose, a monstruosa mãe de Gypsy Rose Lee, a personagem principal da história. Para Hitchcock, Laurents escreveu o roteiro original de Festim Diabólico (1948), aquele filme famoso por não ter cortes e em que Johnn Dall e Farley Granger matam um amigo e servem um jantar sobre a própria arca onde esconderam o corpo. No mesmo ano, Laurents já escrevera para Anatole Litvak o roteiro de Na Cova das Serpentes, um dos primeiros filmes a tratar com compaixão as doenças mentais (e no qual o terrível drama de Olivia de Havilland inspirou a carioca Liliane Lacerda de Menezes a criar a palavra "fossa"). Em 1949, a primeira peça de Laurents, Home of the Brave (1945), foi adaptada pelo diretor Mark Robson para Clamor Humano, um dos primeiros filmes sérios sobre racismo nos EUA. Isso, apesar da mudança do foco, bem à Hollywood: a peça era sobre anti-semitismo; no filme, a vítima passou a ser um negro. Laurents era "de esquerda". Recusou-se a colaborar na "caça às bruxas" e entrou na lista negra do macarthismo. Sem poder trabalhar em Hollywood, mudou-se para a Europa, onde escreveu uma peça. The Time of the Cuckoo, adaptada para o cinema em 1955 por David Lean no inesquecível Quando o Coração Floresce (Summertime), com Katharine Hepburn e Rossano Brazzi - em 1965, o próprio Laurents transformaria Summertime no musical Do I Hear a Waltz?, com canções de Richard Rodgers e (ora, vejam só) Sodheim. E tem mais. A militância política de Laurents, desde os tempos de estudante nos anos 30, serviu de base para seu roteiro do filme O Nosso Amor de Ontem (1973), enorme sucesso de Sydney Pollack, com Barbra Streisand e Robert Redford. Aliás, fora Laurents, como diretor, quem dera a primeira chance a Barbra na Broadway, em 1963, ao contratá-la para fazer a solteirona Miss Marmelstein no musical de Harold Rome, I Can Get It for You Wholesale. Detalhe: Miss Marmelstein tinha 50 anos; Streisand, 19. Muito depois, também como diretor, Laurents seria responsável por um blockbuster da Broadway: La Cage aux Folles (1983), grande musical de Jerry Herman. Etc. etc. Laurents está hoje com 82 anos e, com um currículo tão glorioso, o que lhe restaria fazer? Escrever sobre ele - contar sua vida. E foi o que fez, num livro lançado em fins do ano passado, Original Story by Arthur Laurents (Knopf, NY, 436 págs., US$ 30). É um dos livros de memórias mais bitchy (maldosos), deliciosos e bem escritos por uma celebridade do teatro e do cinema. Ninguém por quem ele passou na Broadway ou em Hollywood está a salvo, mas, para não ser acusado de ter se sentado sobre o próprio rabo, Laurents já abre a guarda logo nas primeiras linhas: judeu, homossexual e, desde tenra idade, esquerdista - ou seja, dificilmente os requisitos que tornavam confortável a vida de um jovem americano na primeira metade do século. Boy, como ele sofreu. A carreira de Laurents começou cedo e arrolou muita gente que só depois ficaria célebre. Lena Horne, para começar, ele conheceu quando ela ainda se chamava Helena Horne. Com William Holden, disputou um torneio para ver quem bebia mais, no tempo em que ambos serviam no Exército. E Laurents teve o privilégio de ouvir ao vivo várias tiradas de Dorothy Parker, inclusive aquela no saguão do hotel em Nova York quando o cachorrinho da escritora fez xixi numa coluna - o gerente olhou feio e Dorothy justificou-se: "Fui eu." Ao ir trabalhar em Hollywood em 1947 e ao ser convidado às mansões dos magnatas do cinema, Laurents custou a se dar conta de onde conhecia o estilo e a decoração delas. Claro: das casas inglesas como elas eram vistas pelos cenógrafos dos filmes da Metro - a única diferença era a piscina no lugar dos estábulos. Para um garoto de Nova York, era uma constatação terrível: na cidade do cinema, tudo era fake, inclusive a vida real. Em Hollywood, Laurents jogou tênis com Charles Chaplin, foi um dos habitués das festas do diretor George Cukor e passeou de barco com Katharine Hepburn e Spencer Tracy (com Tracy chapado de uísque na espreguiçadeira e Hepburn afofando almofadas para ele). Laurents ficou desapontado ao descobrir que Spencer, tão amável e boa gente, era "de direita", assim como Barbara Stanwick, John Wayne, Ginger Rogers e Ronald Reagan. E, com toda a sua tarimba de Nova York, até ele se chocou ao ver, numa festa, Humphrey Bogart dando dentadas num copo de martini e, com a boca cheia de sangue, desafiando os outros a fazer o mesmo. O primeiro namorado de Laurents em Hollywood foi o galã Farley Granger e os dois decidiram morar juntos. No passado, já houvera o precedente de Cary Grant e Randolph Scott, mas, em 1948, homens dividindo os aventais ainda não era coisa que se assumisse. Por isso, quando saíam à noite, os dois se faziam acompanhar por amigas atrizes: assim, para todos os efeitos, Laurents estava "saindo" com Geraldine Brooks e Farley, com Shelley Winters. Geraldine sabia que Laurents era gay, mas a romântica Shelley acreditava que Farley estava mesmo a fim dela. Antes disso, Laurents já fora contratado por Hitchcock para escrever o roteiro de Festim Diabólico, estrelando Farley. Os três rapazes do filme (os dois assassinos e a vítima) eram nitidamente homossexuais, mas, nas inúmeras reuniões com Hitchcock no estúdio ou na casa dele, em nenhum momento a palavra homossexualismo foi pronunciada em relação ao filme. Isso intrigava Laurents porque, segundo ele, Hitch adorava contar histórias de homossexuais e falava de sexo o tempo todo - não do papai-mamãe clean e tradicional, mas de perversões brutais de mentes criminosas. Com tudo isso, para Laurents, Hitchcock era assexuado e sua propalada fixação por louras geladas não passava de mero marketing. Se Hitchcock tinha uma paixão real, diz ele, era a câmera. Mas o "subtexto" homo de Festim Diabólico era tão forte para Hitch que os atores que ele queria para o filme eram Cary Grant no papel do professor e Montgomery Clift e Farley Granger como os assassinos - todos gays. Infelizmente Grant e Clift, com medo de se verem fora do armário, refugaram donde o doce e assexuado James Stewart ficou sendo o professor. O bolha John Dall ficou sendo um dos assassinos e o filme se perdeu ali. Nem tudo é bitchy no livro de Arthur Laurents. Em sua longa vida ele gostou de muita gente, como Lena Horne, Anita Ellis (a cantora que dublou Rita Hayworth em todos os filmes em que Rita "cantava"). Sondheim, Mary (filha de Richard) Rodgers, Betsy Blair (mulher de Gene Kelly, que ele tachou de inseguro, vaidoso e egoísta), Judy Holliday, Hitchcock. Mas o melhor é quando ele não gosta de alguém e, então, sai de baixo. Seu julgamento de colegas que deduraram gente no macarthismo é implacável - e Laurents os conhecia bem, de antes e de durante os interrogatórios. Quanto maior a amizade antes, maior o desprezo depois pelo informante. No livro, ele chama tranqüilamente Jerome Robbins de canalha (embora tenha voltado a trabalhar com ele), não perdoa Elia Kazan e deplora o comportamento do ator Larry Parks, que era um candidato sério ao estrelato nos dois filmes em que interpretara Al Jolson. Parks, diz Laurents, fez pior do que muitos, porque tentou ficar bem com os dois lados: entregou gente nos interrogatórios reservados e depois quis se passar por bom moço recusando-se a fazê-lo nas sessões abertas ao público. O livro tem também passagens pungentes, como as que narram a humilhação a que sublimes artistas do teatro tinham de se submeter para atrair investidores. West Side Story, entre outros, foi durante anos apenas um sonho seu e de Robbins, Bernstein e Sondheim. Revezando-se, esses quatro fizeram mais de 30 leituras da peça (com o escore inteiro sendo tocado e cantado) para grupos de ricos potencialmente interessados, reunidos em apartamentos chiques de Nova York - e, com meia hora de leitura, já sentiam sua platéia distraída ou louca para ir embora dali. De fato, era uma história em que ninguém, em 1958, podia fazer fé: onde já se vira um musical - um musical! - cheio de porto-riquenhos pobres e no qual três pessoas morriam a faca e tiro? Mas, se não fosse assim, não seria um musical de Arthur Laurents.

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