Defensor de uma música viva

Rigor nas análises marcou a carreira do crítico J. Jota de Moraes, que morreu na quarta

PUBLICIDADE

Por JOÃO MARCOS COELHO
Atualização:

É dura, duríssima a vida do crítico musical. Ele tem de atuar simultaneamente em duas frentes: como catalisador, deve examinar e descartar o lixo sonoro que nos cerca, filtrando e incentivando a música de qualidade; e, como provocador, tem de surpreender os padrões de gosto, tirar os leitores da zona de conforto, levá-los a experimentar, descobrir o novo. Em ambas as frentes, deve ter consciência de que a própria escolha do concerto, livro ou gravação em suporte físico ou digital sobre o qual vai escrever já implica atitude política. E ser o menos previsível possível, isto é, não ter agenda fixa de dogmas. Fugir da resenha, crítica de livro, concerto ou gravação rotineira, feita com o piloto automático - em respeito ao leitor.Como conseguir isso? Reinventando-se a cada instante, conhecendo novas reflexões sobre a música, correndo atrás de todo tipo de novidades - mesmo que elas se revelem depois descartáveis. Músicos e compositores esquecem que é tarefa do jornalista musical chafurdar neste lixão sonoro em busca de centelhas que valham a pena, que apontem caminhos, que pratiquem transgressões. Esta foi a cartilha pela qual se pautou J. Jota de Moraes, que morreu na quarta, aos 69 anos. A estes pressupostos, acrescente-se o rigor de suas análises e comentários. E, sobretudo, o cuidado extremo com as palavras. Afinal, praticou durante 32 anos no Jornal da Tarde um credo semelhante a este que acabei de esmiuçar. Este é meu credo também. Parte dele aprendi lendo seus textos quando estudante de música e de filosofia.Seu radicalismo era sadio, pois sua luta era pela música viva, que rompe padrões, estabelece novos paradigmas, entreolha o futuro. Recentemente o filósofo Vladimir Safatle escreveu que "a arte nunca é o reflexo da vida social. É, antes, a figura avançada daquilo que a vida social ainda não é capaz de pensar, daquilo que ainda não tem forma no interior de nossas formas hegemônicas de vida".Concordo e acrescento que o crítico precisa praticar o princípio esperança tal como o formulou Ernest Bloch. Para ele, a música permite a antecipação de uma vida desalienada: "Não somos ainda nós mesmos, mas na música antecipamos esta realização futura." A música não é parte do futuro já presente, mas uma força que garante a possibilidade real do futuro esperado. Não por acaso, para Bloch a música é a única linguagem da utopia. Esta pode escapar do conceito, mas nunca da música.Sempre dividimos - cada qual em sua trincheira - a paixão pela música contemporânea e, de modo mais abrangente, pela "de invenção", perfeita expressão de Augusto de Campos para definir a música que foge do entretenimento, descarta o óbvio e se questiona o tempo todo. Alimentamos uma polêmica nos anos 80 - eu na Folha de S. Paulo, J. Jota no Jornal da Tarde - sobre a música politicamente engajada. Naqueles anos em que se lutava pelas Diretas-Já, ficamos em campos opostos. Jota, contra, com os irmãos Campos; eu, a favor, com Gilberto Mendes e Willy Corrêa de Oliveira. Desde então, não mais nos falamos. Não era preciso. Continuamos, cada um a seu modo, a praticar no dia a dia o único dogma que vale a pena: dar mais visibilidade às músicas contemporâneas. A vida musical tradicional apoia-se no princípio da repetição. Ano após ano, empilham-se, um após outro, os mesmos Bachs, Beethovens e Brahms - e de preferência, com as mesmas obras. Já dizia o compositor argentino Mauricio Kagel que a vida musical convencional quer "atingir o maior número de pessoas possível com o menor número de obras". O público gosta disso, repete também os aplausos às mesmas obras repetidas "ad nauseam".Cabe ao crítico desmontar esta narcótica engrenagem assim descrita pelo pesquisador Christopher Small: "O público age como se fosse criança. Gosta de ouvir/assistir na TV a mesma história/filme centenas, milhares de vezes." J. Jota mergulhou inteiro nesta desconstrução radical em mais de três décadas de crítica. Com pleno êxito.

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.