É dura, duríssima a vida do crítico musical. Ele tem de atuar simultaneamente em duas frentes: como catalisador, deve examinar e descartar o lixo sonoro que nos cerca, filtrando e incentivando a música de qualidade; e, como provocador, tem de surpreender os padrões de gosto, tirar os leitores da zona de conforto, levá-los a experimentar, descobrir o novo. Em ambas as frentes, deve ter consciência de que a própria escolha do concerto, livro ou gravação em suporte físico ou digital sobre o qual vai escrever já implica atitude política. E ser o menos previsível possível, isto é, não ter agenda fixa de dogmas. Fugir da resenha, crítica de livro, concerto ou gravação rotineira, feita com o piloto automático - em respeito ao leitor.Como conseguir isso? Reinventando-se a cada instante, conhecendo novas reflexões sobre a música, correndo atrás de todo tipo de novidades - mesmo que elas se revelem depois descartáveis. Músicos e compositores esquecem que é tarefa do jornalista musical chafurdar neste lixão sonoro em busca de centelhas que valham a pena, que apontem caminhos, que pratiquem transgressões. Esta foi a cartilha pela qual se pautou J. Jota de Moraes, que morreu na quarta, aos 69 anos. A estes pressupostos, acrescente-se o rigor de suas análises e comentários. E, sobretudo, o cuidado extremo com as palavras. Afinal, praticou durante 32 anos no Jornal da Tarde um credo semelhante a este que acabei de esmiuçar. Este é meu credo também. Parte dele aprendi lendo seus textos quando estudante de música e de filosofia.Seu radicalismo era sadio, pois sua luta era pela música viva, que rompe padrões, estabelece novos paradigmas, entreolha o futuro. Recentemente o filósofo Vladimir Safatle escreveu que "a arte nunca é o reflexo da vida social. É, antes, a figura avançada daquilo que a vida social ainda não é capaz de pensar, daquilo que ainda não tem forma no interior de nossas formas hegemônicas de vida".Concordo e acrescento que o crítico precisa praticar o princípio esperança tal como o formulou Ernest Bloch. Para ele, a música permite a antecipação de uma vida desalienada: "Não somos ainda nós mesmos, mas na música antecipamos esta realização futura." A música não é parte do futuro já presente, mas uma força que garante a possibilidade real do futuro esperado. Não por acaso, para Bloch a música é a única linguagem da utopia. Esta pode escapar do conceito, mas nunca da música.Sempre dividimos - cada qual em sua trincheira - a paixão pela música contemporânea e, de modo mais abrangente, pela "de invenção", perfeita expressão de Augusto de Campos para definir a música que foge do entretenimento, descarta o óbvio e se questiona o tempo todo. Alimentamos uma polêmica nos anos 80 - eu na Folha de S. Paulo, J. Jota no Jornal da Tarde - sobre a música politicamente engajada. Naqueles anos em que se lutava pelas Diretas-Já, ficamos em campos opostos. Jota, contra, com os irmãos Campos; eu, a favor, com Gilberto Mendes e Willy Corrêa de Oliveira. Desde então, não mais nos falamos. Não era preciso. Continuamos, cada um a seu modo, a praticar no dia a dia o único dogma que vale a pena: dar mais visibilidade às músicas contemporâneas. A vida musical tradicional apoia-se no princípio da repetição. Ano após ano, empilham-se, um após outro, os mesmos Bachs, Beethovens e Brahms - e de preferência, com as mesmas obras. Já dizia o compositor argentino Mauricio Kagel que a vida musical convencional quer "atingir o maior número de pessoas possível com o menor número de obras". O público gosta disso, repete também os aplausos às mesmas obras repetidas "ad nauseam".Cabe ao crítico desmontar esta narcótica engrenagem assim descrita pelo pesquisador Christopher Small: "O público age como se fosse criança. Gosta de ouvir/assistir na TV a mesma história/filme centenas, milhares de vezes." J. Jota mergulhou inteiro nesta desconstrução radical em mais de três décadas de crítica. Com pleno êxito.