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Décio Pignatari lança "colagens autobriográficas"

Por Guilherme S. Gomes Jr.

Por Agencia Estado
Atualização:

"A poesia do sr. Décio Pignatari é principalmente uma poesia de mobilidade", comentava Sérgio Buarque de Holanda, em 1951, logo após a publicação de Carrossel. Alguns poucos anos mais tarde, já firmado o concretismo na cena poética brasileira, Mário Faustino dizia de seus protagonistas que, "como artistas de vanguarda, têm todo o direito, e quiçá mesmo o dever, de serem extremistas, combativos, proselitistas, exclusivistas, etc. Cabe aos que não embarcam em sua arca levá-los a sério, aproveitar-lhes a experiência, aplicá-la noutros setores e de outras maneiras, incorporá-la, enfim, à corrente viva de nossa poesia". Tanto tempo passado, Errâncias parece confirmar as afirmações desses críticos. O próprio título é mobilidade, e descreve bem o ir e vir - no tempo, no espaço, no imaginário contemporâneo - desse artista inquieto. E as proposições que encontramos no caminho quase sempre guardam o caráter combativo, proselitista, exclusivista de Pignatari. Na definição do autor, o livro é uma "colagem autobiográfica de pedaços de biografias alheias", o que perfaz uma espécie de "biobalanço". Pessoas, principalmente, mas também lugares, flagrados boa parte das vezes pela própria câmara do autor, que também seleciona outras fotos muito boas, como uma de Klaus Werner em que Pignatari, Haroldo e Augusto de Campos estão postos contra uma parede como num ritual de identificação de suspeitos; e uma magnífica foto de Peirce, de Joseph Brent, que convida a uma longa meditação. Mas, entre as biografias alheias e a autobiografia, sobressai o autor e sua personalidade crítica. Pignatari está a todo tempo afirmando seu olhar perquiridor e a visão de mundo que construiu no último meio século sobre poesia, ciência, arte, política. Mas esse caráter combativo, que lembra as querelas dos anos 60 e 70, não impede que apareça no livro um outro narrador, memorialista de suas cidades e de tipos desconhecidos, que as vezes tornam-se mais interessantes do que os grandes nomes que pontuam o livro. Entre Oswald, Tarsila, Volpi, Jakobson, Peirce, Borges, Mallarmé, Pound, João Cabral, surgem o boxeador Paulo de Jesus; o artista gráfico Franklin Horylka; o artista/inventor Kasmer Fejer, que começou como escultor num ateliê no Bexiga mais parecido com um laboratório de alquimia e terminou obscuro em Paris, depois de produzir e detonar os frutos da fórmula de uma fabulosa resina plástica; e o curioso inventor aventureiro Dmitry de Lavaud, que nasceu em Osasco e parece ter terminado diante de um pelotão de fuzilamento na França, em 1945, narrativa que lembra um pouco as biografias fictícias de Borges dos anos 30. Arrisco dizer que são essas histórias que fazem a fortuna do livro. No que diz respeito aos grandes nomes, é também interessante a maneira de aproximar-se deles, pela via do circunstancial, do anedótico, mas muitas vezes o perfil alheio é obscurecido pela necessidade do autor de afirmar suas idéias e de dar seqüência a antigos combates que me parecem já um tanto deslocados. O livro não tem pretensões teóricas ou históricas, mas isso não impede o autor de evocar fragmentariamente as grandes linhas de força do pensamento sobre arte, literatura, política, ciência, técnica, que marcaram a história cultural das últimas décadas, tendo como centro o Brasil. Falando de personagens díspares, subtraídos dos mais variados contextos, deslocando constantemente o foco geográfico, histórico, temático, sobra um amplo espaço para o exercício caprichoso de todo tipo de reflexão: da expansão do cérebro humano à política dos comunistas, da semiologia "galo-búlgara" à "teotecnocracia" japonesa, da descoberta do mar comercial pelos gregos à poesia concreta. E tudo isso num tom as vezes um tanto apodíctico. O caráter errático, previamente assumido, e a afirmação de si mesmo como um tipo temperamental, justificam afirmações muito incisivas nem sempre acompanhadas de reflexão. Dizer, por exemplo, que a "semiologia européia não é ciência, é crença, druidismo galo-búlgaro, e está para a semiótica peirciana como o art déco para a Bauhaus", é crítica não destituída de graça que, no entanto, não exime o autor de demonstrar o rendimento verdadeiramente científico da semiótica peirciana no Brasil. Talvez seja o momento de se indagar sobre o que se fez depois disso, se os exercícios interpretativos daqueles formados na leitura de Barthes, Genette ou Todorov fazem hoje menos sentido do que os daqueles que foram formados na Grande Lógica de Peirce? Não seria também uma espécie de "druidismo" a maneira como o autor termina o escrito sobre o filósofo americano: "Para Peirce, amor é pensamento"? É o que se vê também no caso da política das esquerdas na história recente do Brasil e do mundo, que em vários fragmentos acaba por ocupar um bom espaço no decorrer do livro. No meio de uma breve reflexão sobre Borges, irrompe como um dardo a seguinte consideração: "Isso de populismo, no Brasil, é o fruto semântico espúrio de sociólogos e políticos marxistas de má consciência que seguiam a reboque do stalinista Partido Comunista Brasileiro, cujo fundamento era a ignorância (...)" A crítica à política dos comunistas, que fazia sentido há alguns anos, não libera, no entanto, o autor de esclarecer por que tantos jovens da sua geração começaram sua trajetória na órbita dos comunistas, alimentados pelos mesmos equívocos que mais tarde foram denunciados. Pelo que conta o livro, Waldemar Cordeiro e Rogério Duprat foram ligados ao partido, e o próprio Pignatari participou, literalmente como compagnon de route, com Cordeiro, de uma expedição ao Chile para um congresso cultural latino-americano, de aparente hegemonia comunista, em 1953. Pignatari explicita suas opções posteriores, que acabariam por confluir em uma "ética confuciana", e não deixa de elogiar os "eurocomunistas" italianos, que acolheram a vanguarda artística numa experiência cultural até então inédita. Mas perde a oportunidade de tornar mais compreensível a origem das relações entre as vanguardas estéticas e os comunistas no Brasil. Mas o livro tem o mérito de ser divertido. Um pouco como um álbum de fragmentos heteróclitos afetivamente reunidos por seu autor, pode ser lido também fragmentariamente, deixado de lado, folheado, retomado. São histórias interessantes da rica experiência de um poeta seduzido pela Grande Lógica no caos do século 20. E que agora só quer contar: um pouco de si, de seus amigos, e dos grandes nomes que orientaram sua trajetória. Errâncias, de Décio Pignatari. Editora Senac, 204 págs. R$ 32,00

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