'Decameron' ganha versão ilustrada de Alex Cerveny nos 700 anos do autor

Clássico escrito para exorcizar a peste na Idade Média ganha duas novas versões

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Por Antonio Gonçalves Filho
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Foi exatamente com esse objetivo em mente que Boccaccio reuniu 100 narrativas que exorcizam a peste negra, estabelecendo com sua coleção de histórias – algumas picantes, outras nem tanto – o marco zero da prosa ficcional realista no Ocidente. Como bônus, ele abriu caminho para a liberdade dos renascentistas. O amor espiritualizado da Baixa Idade Média baixava à terra para assumir uma dimensão mais humanista no século 14, quando a comunicação oral, até então predominante, começa a perder terreno para a escrita. Grande parte dessa centena de narrativas veio do meio do povo para o deleite da burguesia mercantil. A perenidade de Decameron, como escreveu a tradutora Ivone C. Benedetti, resultou da “perfeita comunhão entre o escritor e seu público”.

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São vários os exemplos de apropriação das narrativas populares, de jovens que se hospedam na casa de um homem e abusam da sua filha à história de Masetto, que se finge de mudo, entra como jardineiro de um convento e vira amante de todas as freiras. Essas histórias são contadas por dez jovens (sete moças de origem nobre e três rapazes) que buscam abrigo nas montanhas, fugindo das cidades dizimadas pela peste. A narrativa de Bocaccio não omite o flagelo. Ao contrário. Ao lado de cenas picarescas como as descritas anteriormente convive o fantasma da praga, da morte, do temor religioso. Ele reconta essas histórias usando a linguagem de seu tempo.

Por fidelidade a ela, Alex Cerveny foi buscar inspiração nos manuscritos que se encontram na Biblioteca Nacional de Paris e na Biblioteca do Estado em Berlim. As duas edições foram usadas como referências para ilustrar a edição parcial do Decameron. A encomenda da Cosac Naify previa intervenções gráficas em todas as páginas. A influência do traço de Boccaccio, que ilustrou a própria obra, é notável em cada uma delas, mas Cerveny avança no tempo e emula também o estilo dos artistas do Renascimento, principalmente Piero della Francesca. Seu retrato do duque de Urbino serve de modelo para o artista brasileiro criar um dos personagens da primeira novela da primeira jornada, que conta como Cepparello engana um padre e é tomado por santo quando morre.

Outras fontes visuais incluem o filme que Pier Paolo Pasolini fez baseado no clássico. O jardineiro Masetto, flagrado pelas freiras em plena ação onanista, é um exemplo. Outro é o trio formado por Peronella, seu amante e o marido. Ela esconde o primeiro num tonel, mente para o marido que o vendeu e o faz entrar dentro dele para examinar seu estado, enquanto o amante se livra das calças e avança sobre ela. Predomina no desenho o mesmo erotismo campesino do filme de Pasolini, que abjurou sua recriação de Boccaccio ao ver a obra consumida pelo público como pornografia.

Nenhuma das 44 ilustrações de Cerveny corre o risco de ser classificada da mesma forma. Elas conservam a inocência das ilustrações dos livros infantis feitas pelo artista, que completa 50 anos de idade e 30 de carreira com uma exposição de pinturas e desenhos na Casa Triângulo leia abaixo). O exemplo máximo desse segmento literário dedicado às crianças é o conjunto de ilustrações produzidas para Pinóquio, o clássico de Collodi, também publicado pela Cosac Naify.

Ao contrário dos desenhos de Pinóquio, monocromáticos, os de Decameron são multicoloridos. Para o primeiro, Cerveny pesquisou uma técnica da gravura usada no século 19, o cliché verre (clichê em vidro), em que o artista chamusca uma placa de vidro com uma vela e desenha sobre a superfície, como se fosse um negativo fotográfico. Em Decameron, ele dispensou instrumentos e confiou na técnica pessoal. Fez bem.

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