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Década de 20 marca presença profissional de Freud no País

Psicanalista Renato Mezan relata a história da psicanálise no Brasil, cujo pioneiro foi Durval Marcondes

Por Renato Mezan
Atualização:

As primeiras referências às ideias de Freud por parte de psiquiatras brasileiros são contemporâneas da publicação dos seus artigos em revistas científicas alemãs, ou seja, datam do fim do século 19 e dos anos iniciais do 20. Isso porque, dado o prestígio da medicina germânica, muitos brasileiros faziam seus estudos na Alemanha ou em Viena, e se mantinham atualizados assinando os periódicos lá editados.

 

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Com uma exposição sobre o novo método feita em 1899 por Juliano Moreira, da faculdade do Rio de Janeiro, pouco a pouco vão surgindo menções aos trabalhos de Freud, porém sem destaque especial: é mais um entre os autores citados, assim como Krafft-Ebing, Bleuler ou Kraepelin. Aqui e ali, temos notícias do emprego de técnicas freudianas na prática clínica, mas sempre isoladamente e sem continuidade.

 

Na década de 1920, a influência das vanguardas europeias sobre os modernistas abre outra via para a penetração das ideias psicanalíticas: no Manifesto Antropofágico, Oswald de Andrade se serve de algumas delas, e Mário de Andrade chegou a sugerir o termo sequestro para verter o nome do principal mecanismo de defesa proposto por Freud (Verdrängung, depois traduzido como repressão ou recalque). Sai um ou outro artigo na imprensa, ouve-se uma que outra conferência, do mesmo modo como se fala do surrealismo ou do tango: a psicanálise é mais um assunto para as conversas de salão, sem prejuízo do emprego de tal ou qual aspecto dela em determinado caso atendido por um profissional.

 

É com Durval Marcondes que tem início um esforço mais consequente para que as ideias freudianas deixem de ser apenas mais um item no cardápio intelectual. Ele se põe em correspondência com Freud, funda uma Revista Brasileira de Psicanálise (que teve um único número, em 1928), organiza em São Paulo a Sociedade Brasileira de Psicanálise (ainda em 1927), e busca trazer para a cidade um analista didata, capaz de realizar análises de verdade e assim formar um primeiro grupo de psicanalistas locais.

 

À sombra de Melanie Klein, com a chegada da dra. Adelheid Koch à capital paulista, no ano de 1937, encerra-se a fase diletante da psicanálise brasileira, e tem início um novo período, que a meu ver se estende até meados da década de 1970. Ele se caracteriza pela formação de Sociedades de Psicanálise em diversas capitais; à medida que atingiam determinados padrões, eram aceitas como filiadas pela Associação Internacional de Psicanálise (IPA, da sigla em inglês).

 

Quem quisesse se tornar psicanalista devia seguir um curso de formação nestas associações, de cujo currículo faziam parte os principais escritos de Freud. A maneira pela qual eram lidos, porém, era tributária de desenvolvimentos mais amplos no interior da disciplina, tanto técnicos quanto políticos. Refiro-me ao fato de que depois da guerra muitos latino-americanos vão se formar na Inglaterra, onde tomam contato com o círculo de Melanie Klein e acabam adotando o estilo clínico que ela inaugurou.

 

O kleinismo torna-se assim a corrente predominante nas sociedades brasileiras; Freud vai aos poucos se convertendo numa espécie de pai fundador, um vulto venerado a cujo retrato na parede se fazem as reverências de praxe, mas sua obra passa a ser considerada como algo de importância "histórica", com que se tem a mesma relação que com os clássicos da arte e da literatura. Na clínica, porém, empregam-se as ideias de Klein e de seus discípulos.

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Assim, durante as décadas de 1950 e 1960, a metrópole psicanalítica para os brasileiros é Londres. A publicação dos três volumes da biografia de Freud escrita por Ernest Jones, assim como dos primeiros volumes da nova tradução inglesa dos Gesammelte Werke por James e Alix Strachey - empreendimento que consumiu muitos anos de trabalho, e resultou nos 24 tomos da Standard Edition of the Complete Works of Sigmund Freud - estimulou alguns analistas do Rio de Janeiro a verter para o português os escritos do mestre. Mas a opção de os traduzir da Standard, e não do original, resultou num trabalho sem coerência na terminologia e eivado de erros.

 

O fato de a Edição Standard Brasileira - realizada com boa vontade, porém sem qualidade literária nem científica - ter sido recebida sem críticas diz bastante sobre a posição secundária de Freud nas referências dos analistas brasileiros de então: se os textos da escola kleiniana tivessem sido traduzidos com a mesma displicência, com certeza a reação teria sido outra. Somente com as novas condições mencionadas mais adiante é que se percebeu como era ruim o texto disponível na nossa língua.

 

Nas mesmas décadas, mas ainda sem impacto sobre a psicanálise em nosso país, Jacques Lacan estava empreendendo na França o chamado "retorno a Freud". O estudo minucioso dos textos, frequentemente no original alemão, resultou para os seguidores de Lacan numa grande familiaridade com o pensamento do mestre de Viena, e na transformação dele num interlocutor tanto para a teorização quanto para a prática clínica, o que não era o caso nos países de língua inglesa.

 

A partir de 1970, as doutrinas lacanianas começam a ser divulgadas na América Latina, em especial na Argentina. Os profissionais platinos que vinham para cá - primeiro como conferencistas visitantes, e após o golpe de 1976 como emigrados políticos - traziam na bagagem uma nova visão da obra freudiana, influenciados como estavam pelo prestígio de que ela passara a desfrutar na França. Durante a década de 1980, retornam ao país vários analistas formados naquele país, ou na universidade belga de Louvain, então um importante centro lacaniano. Eles trazem consigo um conhecimento e uma valorização de Freud que muito contribuíram para a maior difusão do seu pensamento nas plagas tropicais. Em alguns novos cursos de formação para psicanalistas - como o do Instituto Sedes Sapientiae, em São Paulo - o corpus freudiano se torna o eixo central dos estudos, o que ainda hoje contrasta com o programa de corte mais britânico em uso nas sociedades filiadas à IPA.

 

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Por fim, para compreender a situação atual de Freud na cultura brasileira é preciso mencionar três outros processos ocorridos nos últimos 30 anos. Em primeiro lugar, a crescente solicitação por parte da mídia para que psicanalistas expressem sua opinião acerca de comportamentos, atitudes, declarações de autoridades políticas e científicas, crimes particularmente hediondos, e outros fatos da vida social. Nesses comentários, frequentemente é citada alguma ideia do fundador da disciplina, e isso contribui para que o grande público se familiarize com conceitos como o de inconsciente, complexo de Édipo, perversão, e assim por diante.

 

Em segundo lugar, a presença da psicanálise nos cursos de pós-graduação em psicologia e filosofia deu origem a muitas teses de boa qualidade, que por sua vez - terceiro processo - vêm sendo publicadas por editoras especializadas. Nelas, e portanto nos livros a que dão origem, são frequentes as referências a Freud, e discussões acerca das suas implicações para o assunto tratado.

 

Sinal de uma exigência congruente com o novo papel da obra freudiana no pensamento dos analistas brasileiros é a decisão da Editora Imago de encetar uma nova tradução dela, desta vez com critérios adequados e a partir do original alemão. Sob a coordenação de Luiz Alberto Hanns, até o momento já saíram três do total de volumes projetados. As excelentes notas explicativas, e a qualidade da tradução, com certeza a tornarão um instrumento de trabalho utilíssimo para os psicanalistas, pesquisadores e demais interessados em conhecer o que Freud realmente disse.

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Para concluir: além das constantes citações em artigos, livros e conferências, esse contato mais íntimo com a obra fundadora da psicanálise vem influindo no modo como os profissionais conduzem seu trabalho clínico. A capacidade dos escritos de Freud para inspirar reflexões sobre os mais variados aspectos da vida psíquica, assim como para fornecer pistas que permitem compreender fenômenos dos quais ele não tratou explicitamente, parece dar razão ao psicanalista francês André Green, o qual, questionado certa vez sobre o que havia de novo em psicanálise, respondeu sem hesitar: "Freud."

 

* Renato Mezan é psicanalista, professor titular da PUC/SP, autor de várias obras sobre Freud e a psicanálise. O texto aqui publicado é parte de um livro sobre o pensamento alemão a ser lançado em 2010 pelo Instituto Goethe de São Paulo, que gentilmente permitiu sua divulgação antecipada

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