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Debandada global no cinema

Por Silviano Santiago
Atualização:

Enquanto o filme foi uma produção artística centrada na Europa e nos Estados Unidos, não era difícil escrever a história universal do cinema. A convicção ditada pela Revolução Soviética embasava a escrita crítica e historiográfica. Um bom exemplo são os seis grossos volumes da História do Cinema Mundial (Histoire Générale du Cinéma), de autoria de Georges Sadoul (1904-1967). Surrealista na origem e desde 1932 filiado ao Partido Comunista Francês, não é por acaso que Sadoul também tenha sido biógrafo do poeta Aragon e do homem do povo Charles Chaplin (Casa do Estudante, 1952). Ao final da 2ª Guerra, tudo contribuía para centrar a indústria fílmica nas economias das nações vitoriosas e nos levar a crer na linha reta do progresso da humanidade.Tanto nas metrópoles do planeta quanto nas cidades provincianas, o cinema já se afirmara como arte de recepção instantânea e planetária. No início do século, no quintal de casa, Carlos Drummond lia sozinho as aventuras de Robinson Crusoé. Na década de 1940, em outra cidade do interior de Minas Gerais, a criança nascida em 1936 se sentava ao lado de centenas de espectadores e todos se empolgavam com os doze episódios de O Terror dos Espiões (Spy Smasher, 1942) e gritavam como selvagens. Lia os gibis gringos impressos no Rio de Janeiro. Folheava o jornal carioca O Correio da Manhã, assinado pelo pai, e, à noite, ao lado dele, ouvia as notícias transmitidas de Londres pela rádio BBC. Imagens e vozes do mundo tinham como trilha sonora o trote do cavalo que puxa a carroça. Letrada ou analfabeta, a província é o público - os olhos e os ouvidos do mundo.Na capital do País, os cinéfilos lutavam em vão pelo direito à réplica industrial. Como acentuou Walter Benjamin em 1935, a técnica do cinema requer a obrigatória e imediata difusão em massa da obra. Filme é pago pela bilheteria mundial, na bucha. Os periféricos eram cine-clubistas. Nos anos 1950, quando Sadoul publica sua história do cinema, o cinéfilo procurava historiá-lo por vivê-lo de modo crítico, noite após noite. O filme europeu o enfeitiçava. Se política a preferência, olhos e imaginação se encaminhavam para os clássicos soviéticos e os neorrealistas italianos, Rossellini à frente. Se poética a preferência, se encaminhavam para os filmes de vanguarda de Buñuel e Dali e para o hoje clássico cinema francês, René Clair à frente. O imaginário periférico existia nos limites do controle industrial exercido pelo filme euro-americano.Nos anos 1990, o imaginário periférico já alcançara o direito à cidadania industrial e hoje requer sua história. Cinema, Globalização e Interculturalidade (Argos, 2010) é a indispensável coleção de ensaios organizada por Andréa França e Denilson Lopes. Não se estranhe que ali se fale duma realidade fílmica recalcada e beligerante. O primeiro módulo do livro adjetiva o desrecalque: cinema intercultural. Quer avaliá-lo pelos valores defendidos pela atualidade pós-colonial, diaspórica e multicultural. Abre o volume uma citação do profeta Marshall McLuhan: "Eletricamente reduzido, o globo não é mais que uma aldeia". Tendo como referência a Revolução Cubana, as nações africanas e asiáticas (tardiamente pós-coloniais e atualmente diaspóricas) tinham se somado às nações latino-americanas na produção de filmes comerciais. O centramento euro-americano da indústria padecia com a debandada global. O cinema perdia seu lugar físico e passava a ser um discurso em movência geográfica, linguística e econômica que, por sua vez, constituía a novidade dum entre-lugar artístico. Seu modo de ser, sua ontologia, como diria André Bazin, é a diferença. Diferença cultural e étnica, em particular. A periferia ganhava o planeta e a indústria do filme (vale dizer: as bilheterias), fragmentando-os.O segundo módulo da coleção traz ao centro do subtítulo a consequência da interculturalidade, "Cinema, hibridismo e periferia". O artigo de abertura lembra a "onda de ensaios-manifestos militantes" escritos a partir dos anos 1960, de que faz parte a Estética da Fome, defendida por Glauber Rocha. Câmara na mão, Glauber saía pela nação brasileira e o mundo à cata do que poderia catar: "um cinema faminto de filmes tristes e feios", em nada parecido às imagens de Doris Day e Rock Hudson, projetadas em cinemascope. Rio, Zona Norte (1957), de Nelson Pereira dos Santos, e Deus e o Diabo na Terra do Sol (1964), de Glauber, alicerçam o edifício da periferia urbana e rural brasileira e enraízam nosso cinema no hibridismo cultural.Intercalada nas páginas anteriores, uma questão ganha peso no terceiro módulo. Tendo o cinema chinês como exemplo, constata-se que a indústria fílmica intercultural é assimétrica: "forte em produção, fraca em exibição". O cinema intercultural tem de inventar seu espectador, ou acatar os fluxos do capital internacional que o fortalecem. O cineasta pode optar, em detrimento da expressão artística, pelo sucesso comercial. O novo milênio será pródigo em exemplos. Esse módulo pouco se distingue do último, onde se debate recepção e audiência. Neste milênio, a movência ontológica do cinema se situa ao nível dos personagens. O imaginário periférico viaja e é "da fronteira". Arranca o drama do espectro das identidades nacionais e corrobora a diferença entre a coleta de dados antropológica e a realização fílmica. Como acentua Bill Nichols: "a briga de galos de Bali não é projetada para viajar. O novo cinema iraniano sim".Marginalizada na marginalidade, a cineasta Claire Denis assume posição de destaque no último módulo, que também traz questões em torno de gênero. Quer-se incorporar o desejo feminino à dialética transnacional. De modo subjetivo, ela nos fala da dificuldade em pertencer à história do cinema global e, metaforicamente, abraça convicção bem diferente da sentida pelo cinéfilo periférico nos anos 50: "Mas ser marginalizada é uma forma de ser levemente protegida. Estou fazendo a minha própria história, sem que ninguém interfira, e isso é conveniente". Cada um por si e o deus do cinema comercial contra todos, diria Werner Herzog.

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