Davi Arrigucci Jr. lança 'O Guardador de Segredos'

Professor da USP tenta desvendar como prosadores e poetas vinculam sua experiência pessoal à histórica

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Arrigucci: no livro, poetas rebeldes que a academia mal analisa. Foto: Keiny Andrade/AE

 

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Antonio Gonçalves Filho - O Estado de S. Paulo

 

SÃO PAULO - Sem vínculo imediatamente reconhecível, os 21 ensaios de O Guardador de Segredos, escritos entre 1999 e o presente pelo professor aposentado de teoria literária da USP Davi Arrigucci Jr., têm, no entanto, um tema em comum: a ligação da literatura com a experiência histórica. O que está por trás de uma obra literária não escapa à rigorosa análise desse crítico com vocação de entomologista - no bom sentido do radical grego da palavra, aquele do "entomos", do segmentado. Com lente de aumento ele analisa autores que a crítica prefere ignorar ou textos que acabam revelando o caráter conflitivo da poesia de Carlos Drummond de Andrade ou a problemática arquitetura poética de João Cabral de Melo Neto, incapaz de admitir o convívio das palavras arte e inspiração, sempre em campos opostos na arena do autor pernambucano.

 

 

 

Arrigucci anda tão obcecado pela ligação entre criação literária e construção histórica que prepara para breve um outro livro, cuja ousadia deverá ser tão grande quanto a de O Guardador de Segredos. Nele, vai juntar o diretor norte-americano John Ford (1894-1973), o escritor argentino Jorge Luis Borges (1899-1986) e o escritor brasileiro João Guimarães Rosa (1908-1967). O que o trio teria em comum? Um esforço consciente de refletir sobre a história de seus países partindo do território do indiferenciado - o Oeste, no caso de Ford, o pampa, no de Borges, e o sertão, no de Rosa. Para quem explora tão bem como Truffaut o universo de Hitchcock no ensaio extra de O Guardador de Segredos, falar de John Ford vai ser fácil. De Borges, então, nem é preciso dizer. Arrigucci é tradutor do escritor argentino (História Universal da Infâmia) e coordenador da edição de sua obra completa pela Companhia das Letras. De Rosa, uma amostra do que poderá ser seu ensaio está página 113 de O Guardador de Segredos. Trata-se de um texto escrito para o suplemento especial publicado em 2006 pelo Estado para marcar os 50 anos de Grande Sertão: Veredas.

 

"Pensei em estudar três narradores de regiões ‘atrasadas’ que estão permeadas de história, como o Oeste americano, o pampa argentino e o sertão brasileiro porque nos três aparece a dicotomia civilização versus barbárie", justifica Arrigucci, observando que, embora fossem conservadores, homens como Ford e Borges "tiveram uma visão aguda do papel dos vencidos" na constituição de suas respectivas nações. O professor, ao traduzir História do Guerreiro e da Cativa, um dos contos que integram o livro O Aleph, já havia percebido que Borges reinventava a nação argentina ao narrar o rapto de uma criança branca por índios e do guerreiro que renegou seu exército para defender os inimigos que antes atacara. "Borges se declarava o menos histórico dos homens, mas isso é uma falácia", contesta Arrigucci, definindo como inconsistentes os estudos que levam em conta essa informação.

 

Faroeste. Ford, diz ele, não era igualmente o reacionário que pintam por ter dirigido John Wayne em inúmeros faroestes sobre a relação conflituosa entre brancos e índios. "Seu sentido de história é inegável", justifica. Os filmes de Ford, segundo o professor, estariam impregnados de elementos que rejeitam a visão simplista do índio como o selvagem que deve ser desterrado. Já o sertão, por ser o lugar do reencontro do narrador consigo mesmo - caso de Rosa -, é o lugar em que o escritor penetra para refletir sobre a ambiguidade do Brasil. "Nosso problema é entender como é que o romance de repente renasce no sertão brasileiro de dentro das formas da narrativa oral", observa Arrigucci, aproximando Guimarães Rosa do amigo mexicano Juan Rulfo (1917-1986), autor do clássico Pedro Páramo (1955), filmado este ano pelo diretor Mateo Gil. Rulfo é contemplado no livro com um ensaio publicado há seis anos na revista Fragmentos e agora reescrito.

 

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Arrigucci destaca a proximidade entre Pedro Páramo e Grande Sertão: Veredas não apenas pelo uso do monólogo interior - distinto do de Faulkner ou James Joyce. Nas duas obras-primas dos escritores, eles se valem da oralidade do campesino de Jalisco e do jagunço do centro-norte de Minas Gerais . "O que mudou foi essa atitude que eles adotaram diante da linguagem oral, penetrando nela de corpo e alma, partindo de dentro da matéria que tinham para narrar", observa o professor, concluindo que, no caso de Guimarães Rosa, o "atrasado" se rege pelo "moderno". Também no sertão chega o drama urbano, numa região em que o arcaico é identificado com o Diabo. Nos dois escritores, o conto oral, segundo Arrigucci, "é a matriz épica que faz vibrar toda a tradição da vasta poesia narrativa".

 

Na obra de Rulfo, a relação com o mito é ainda mais acentuadamente grega. A descida de Pedro Páramo em direção a Comala seria o equivalente da descida de Eneias (na Eneida) ao inferno para ouvir os mortos e reencontrar o pai Anquises. Rulfo contempla Comala e se pergunta sobre o futuro da terra arruinada (o México). "Equivale a uma penetração no mito épico, do qual deriva o romance, a travessia de um homem em busca do seu destino", explica Arrigucci, identificando tanto em Pedro Páramo como em Grande Sertão traços de um Bildungsroman (romance de formação) subvertido, que iria na direção oposta do romance burguês por "canalizar a épica oral para contar uma história individual". A história de Pedro ou de Riobaldo deixa de ser a da travessia de desgarrados, a da educação sentimental de deserdados, para sintetizar a história de uma nação. Prestando tributo ao mestre Antonio Candido, Arrigucci lembra que, em ambos os casos, a reinvenção do romance passa pela tentativa de lidar com um gênero importado, adaptando-o a um terreno bruto - como o sertão, que tem todos os caminhos e nenhum, onde a sintaxe é o próprio labirinto."Em Grande Sertão: Veredas, a linguagem instaura o mundo, é uma espécie de nebulosa poética com muito arcaísmo e uma poesia verbal que se impõe à própria sintaxe, como se fosse o volteio de um rio."

 

O ensaio O Guardador de Segredos, que dá título ao livro de Arrigucci, trata mesmo do caminho espinhoso que os poetas enfrentam "para dar forma estética particular a uma experiência histórica mais ampla". No caso, ele fala do poeta Sebastião Uchoa Leite (1935-2003), a quem dedica a obra. O curioso é que Uchoa Leite sempre foi lido como um poeta radicalmente individualista, um escritor na contramão da história, que viajava no tempo para resgatar uma ou duas maluquices góticas. Satírico, rabelaisiano, o poema de Uchoa Leite, segundo o professor, "não se constrói como o espaço em que a poesia se dá a ver, mas onde ela tende a se ocultar". Com a matéria biográfica, ele acabou erguendo um monumento à qualidade literária que em tudo contrasta com a precariedade estética do país em que viveu.

 

Rebelde. Outro poeta pouco compreendido tem sua obra analisada por Arrigucci em dois ensaios, o paulistano Roberto Piva, cujo "individualismo anárquico" o manteve afastado da sala de visitas da crítica literária desde que foi publicado por Massao Ohno, em 1963. Rebelde com causa, pastor virgiliano em busca de prazeres exóticos na metrópole, Piva fez poemas de um "erotismo desbragado". A crítica brasileira, lembra Arrigucci, "fez que não viu e voltou as costas para uma obra poética de quase meio século". Mas, na direção contrária dos críticos que analisaram seu trabalho, Arrigucci ousa filiá-lo a uma tradição que inclui os nomes de Murilo Mendes e Jorge de Lima, mostrando como o surrealismo e o catolicismo deram as mãos para receber o filho pródigo, cuja "agressividade" e "desregramento dos sentidos" o teriam mantido longe desses visionários poetas. "Pouco se estuda a renovação católica de Jorge de Lima e a mistura sui generis da religião com o surrealismo de Murilo Mendes, mas ela teve uma importância enorme no contexto estético e ideológico brasileiro."

 

Homem de corrigir injustiças, Arrigucci também cruzou fronteiras como paladino literário. Idealizador da coleção Prosa do Observatório, da editora Cosac Naify, ele publicou autores confinados aos sebos, como o uruguaio Felisberto Hernández (1902 -1964) e o peruano Julio Ramón Ribeyro (1929-1994). Agora, acaba de editar Facundo ou Civilização e Barbárie para a mesma editora, a obra máxima do argentino Domingo F. Sarmiento (1811-1888) sobre o caudilho de mesmo nome. Compartilhar bons livros é com ele mesmo.

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