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Cultura em migalhas

Como se chama a mistura de café e farelo de pão? (Parei tudo para tentar descobrir)

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Por Humberto Werneck
Atualização:

Estava eu posto em sossego, ensaiando retomar a leitura dos poetas gregos do século 3.º a.C., na verdade ainda não iniciada, quando, de Belo Horizonte, me veio uma provocação do Sérgio Fantini.

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Na falta de coisa melhor, imagino, estava este amigo, aliás ficcionista de truz, a ler velha crônica da minha lavra, na qual, também eu à falta de outro assunto, falei do pasmo que sobre mim se abateu ao saber que tem nome, flunfa, aquele lixinho de pelos e fiapos de roupa que ao fim do dia encontramos acumulado em nossos umbigos.

Pois bem – ou mal: a relevante informação, na madrugada belo-horizontina, em meio ao que terá sido insônia braba, dessas que resistem até mesmo à leitura de coisa escrita por este cronista, foi acender no Sérgio Fantini uma lembrança de sua infância na mineira Sabará. Melhor dar a palavra a ele, até para que possamos todos descansar da minha:

“A tia juntava os farelos de pão, colocava na xícara com um pouco de café, misturava e tomava de colherinha. Cresci vendo isso. Um dia, folheando o Aurélio, à toa, dei de cara com a palavra que definia exatamente esse gesto da minha tia. Esperto como sou, em vez de anotar logo, continuei me distraindo, crente (opa) de que depois resgataria a palavra. Qual o que, talvez dissesse meu tio. Nunca mais. Já virei o Aurélio de cabeça pra baixo, ou de ponta-cabeça, como preferem os paulistas, e nada”.

Sem mais para o momento, despediu-se o Sérgio com um abraço, quem sabe a saborear, o sacana, o problema que acabara de transferir para minha encanecida cabeça. Porque, tomando liberdades com o dito de Oscar Wilde, posso resistir a tudo, menos ao irresistível. Abandonei imediatamente o que estava fazendo e, qual moço em luta para afirmar a supremacia de seus dotes, dotes intelectuais, não me entenda mal, lancei-me, cão farejador, de focinho no matagal da mais espessa lexicografia. Pão, farelo, migalha – lá fui eu lançando meus anzóis no dicionário Aurélio, certo de que a qualquer momento estaria em condições de comunicar ao meu desafiante, aprendeu, papudo?, um achado que jazia bem embaixo de suas fuças.

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Nada. Nadei também no Houaiss, e mais, para rimar: mergulhei no Dicionário Analógico do sábio goiano Francisco Ferreira dos Santos Azevedo, essa preciosidade, então esgotadíssima, que Sérgio Buarque de Holanda aplicou no filho Chico, e este em todos nós, ao estimular uma reedição, da qual nunca mais pude desgrudar.

Vou e volto, viro e reviro, certo de que em alguma quebrada destas 763 páginas vou topar com a mistura que à tia do Sérgio Fantini tanto apetecia ingurgitar nas manhãs de Sabará. Não importa se o achado se der por acaso – como aquele, não me canso de repetir, do navegante lusitano que, tendo deixado Lisboa para comprar noz-moscada na Índia, errou de rumo e descobriu um Brasil.

Eu mesmo, bem mais modestamente, com meu barquinho a remo, em busca de outra coisa no dicionário Houaiss, vim a descobrir que guilherme, com inicial minúscula, designa, em jargão de carpinteiro, “ferramenta usada para fazer os filetes das portas, as junturas das tábuas, frisos de caixilhos, etc.” – imprevisto que me desafiou a enveredar pela picada onomástica e nela catar munição para crônica sobre gente que tem nome de coisa. Precisei adiar mais uma vez a leitura dos poetas gregos, mas em compensação fiquei sabendo que mônica, por feminina que seja, é também variedade de mandioca. Se você atende por Bernardo, Beatriz, Gregório, Carolina, Luís ou Madalena, para ficar em apenas meia dúzia de prenomes, saiba que a leitura de “Xará de Coisa” lhe reserva surpresa, nem sempre prazerosa, vou avisando.

A par disso, fascina-me a ideia de que a cada coisa corresponda uma palavra. Pelo menos era o que eu achava até nascer a Gloria Quintanilha Werneck e eu descobrir que não há na língua portuguesa uma palavra para designar a condição de avô e avó, como a paternidade dos pais, a maternidade das mães e a fraternidade dos irmãos. A constatação rendeu duas crônicas, abastecidas sobretudo por senhores e senhoras igualmente à procura de rótulo para a sua inominada avoíce ou avoidade.

Não dou a busca por encerrada – e aproveito para comunicar à praça que tampouco desisti de achar o correspondente feminino de “cavalheirismo”, pois ainda não me resignei a chamar de “damismo” os muitos e imerecidos gestos de cortesia que tenho recebido do outro sexo.

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Quanto à mistura com farelo de pão, assunto que me trouxe aqui, bem, por ora nada posso fazer senão repassar a provocação do solerte Fantini; vai que você tem ou teve uma tia, sabarense ou não, dada a preparar no fundo da xícara uma feia porém deliciosa maçaroca cujo nome esteja, também ele, na ponta da língua.

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