
22 de janeiro de 2011 | 00h00
O definhamento da esperança da família Serapião, camponeses sem muito crédito na natureza como expressão divina, tem algo a ver com a institucionalização do sagrado pelos senhores da terra. Nos campos de Dom Afonso, a família Serapião - conhecida por Sarga por ter como única propriedade uma vaca de mesmo nome -, o sagrado cabe nos limites da casa senhorial. Na choça ou no estábulo, tudo é profano, da vaca aos empregados, que vivem a fazer pactos com o diabo para desestabilizar a ordem e retornar à barbárie que precede a "civilização" de Dom Afonso: o irmão maior, Baltazar, alivia-se com Teresa Diaba, que é só "bicho e instinto", o irmão menor faz sexo com a vaca, o pai traído destrói o corpo da esposa e a filha é abusada sexualmente pelo patrão. Tudo como convém à ordem medieval das coisas.
Para os homens da família, a beleza das mulheres só existe "porque têm parecenças com os homens", que são "a imagem de deus". Assim mesmo, com letra minúscula. Aliás, como tudo em O Remorso de Baltazar Serapião, que reduz todos a um poço de ignorância ancestral, seres minúsculos e defeituosos entre os quais as mulheres seriam os piores. Os odores fortes das fêmeas, inventou o deus dos Sarga para conduzir os homens à loucura. E eles gostam dos maus cheiros, conclui Baltazar, que irá desfigurar a mulher, como o pai o fez com a mãe.
O que Raduan Nassar fez pela literatura brasileira com Lavoura Arcaica, o poeta Hugo Mãe faz pela literatura de Portugal com este livro. Há, inclusive, a semelhança de serem ambas as histórias narradas por filhos de famílias bíblicas à avessas. Nassar usou para isso as relações familiares interditas do Velho Testamento. Hugo Mãe, a sacralidade em estado puro dos bárbaros, arriscando-se a exprimir pela boca de Baltazar uma mensagem criptocristã de autopiedade - a começar pelo discurso inaugural, em que a voz das mulheres emerge das profundezas onde mora o diabo. O mundo camponês de Portugal, afinal, não se diferencia muito das sociedades agrárias de suas colônias.
Para citar mais uma vez Eliade, a terrinha lembra "mundos há muito mortos que só aguardam o punho vigoroso do bárbaro para se decomporem". E o punho de Baltazar é rude o suficiente para punir com pancadas a mulher, suspeita de traição, ainda que o faça, segundo sua lógica, por amor. A transgressão do tempo cronológico é um artifício que conduz a narrativa para uma espacialidade substancialmente inalterada, a do mundo imaginário dos camponeses, traduzido na descoberta do talento pictórico de Aldegundes, o irmão mais novo de Baltazar, que representa para a família uma oportunidade, a única, de ascensão (social e espiritual). Mas, ao contrário de Giotto, o pastor de ovelhas que virou pintor, Aldegundes não tem tanta sorte. Quem nasceu para gado não chega a ser gente, ao contrário do que sonha Baltazar.
O REMORSO DE BALTAZAR SERAPIÃO
Autor: Valter
Hugo Mãe
Editora: 34
(200 págs., R$ 37)
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