O pensador romeno Mircea Eliade , em A História das Religiões, diz que uma das características das sociedades camponesas é não achar a natureza natural. Se, na civilização agrária, tudo era sobrenatural, sagrado, então tudo deveria ser reverenciado como criação divina. Mas não foi por nostalgia desse mundo arcaico que Valter Hugo Mãe escreveu O Remorso de Baltazar Serapião, até mesmo porque, como diz, está "sem convicções na transcendência", ou seja, ou o sagrado está aqui, ou em lugar nenhum.O definhamento da esperança da família Serapião, camponeses sem muito crédito na natureza como expressão divina, tem algo a ver com a institucionalização do sagrado pelos senhores da terra. Nos campos de Dom Afonso, a família Serapião - conhecida por Sarga por ter como única propriedade uma vaca de mesmo nome -, o sagrado cabe nos limites da casa senhorial. Na choça ou no estábulo, tudo é profano, da vaca aos empregados, que vivem a fazer pactos com o diabo para desestabilizar a ordem e retornar à barbárie que precede a "civilização" de Dom Afonso: o irmão maior, Baltazar, alivia-se com Teresa Diaba, que é só "bicho e instinto", o irmão menor faz sexo com a vaca, o pai traído destrói o corpo da esposa e a filha é abusada sexualmente pelo patrão. Tudo como convém à ordem medieval das coisas.Para os homens da família, a beleza das mulheres só existe "porque têm parecenças com os homens", que são "a imagem de deus". Assim mesmo, com letra minúscula. Aliás, como tudo em O Remorso de Baltazar Serapião, que reduz todos a um poço de ignorância ancestral, seres minúsculos e defeituosos entre os quais as mulheres seriam os piores. Os odores fortes das fêmeas, inventou o deus dos Sarga para conduzir os homens à loucura. E eles gostam dos maus cheiros, conclui Baltazar, que irá desfigurar a mulher, como o pai o fez com a mãe.O que Raduan Nassar fez pela literatura brasileira com Lavoura Arcaica, o poeta Hugo Mãe faz pela literatura de Portugal com este livro. Há, inclusive, a semelhança de serem ambas as histórias narradas por filhos de famílias bíblicas à avessas. Nassar usou para isso as relações familiares interditas do Velho Testamento. Hugo Mãe, a sacralidade em estado puro dos bárbaros, arriscando-se a exprimir pela boca de Baltazar uma mensagem criptocristã de autopiedade - a começar pelo discurso inaugural, em que a voz das mulheres emerge das profundezas onde mora o diabo. O mundo camponês de Portugal, afinal, não se diferencia muito das sociedades agrárias de suas colônias.Para citar mais uma vez Eliade, a terrinha lembra "mundos há muito mortos que só aguardam o punho vigoroso do bárbaro para se decomporem". E o punho de Baltazar é rude o suficiente para punir com pancadas a mulher, suspeita de traição, ainda que o faça, segundo sua lógica, por amor. A transgressão do tempo cronológico é um artifício que conduz a narrativa para uma espacialidade substancialmente inalterada, a do mundo imaginário dos camponeses, traduzido na descoberta do talento pictórico de Aldegundes, o irmão mais novo de Baltazar, que representa para a família uma oportunidade, a única, de ascensão (social e espiritual). Mas, ao contrário de Giotto, o pastor de ovelhas que virou pintor, Aldegundes não tem tanta sorte. Quem nasceu para gado não chega a ser gente, ao contrário do que sonha Baltazar.O REMORSO DE BALTAZAR SERAPIÃO Autor: ValterHugo MãeEditora: 34(200 págs., R$ 37)