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Crítico é autoridade em estética

Por Agencia Estado
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O homem fala com um sotaque estranho, um português tão perfeito que não parece de lugar nenhum. "Meus amigos portugueses me corrigiram tanto ao longo dos anos que acho que desenvolvi um português preciosista, como aquele de Jânio Quadros", explicava bem-humorado o paulistano José Neistein, na semana passada, durante uma de suas duas visitas anuais ao Brasil, terra que deixou há 40 anos. Ele deixou o Brasil, mas o Brasil nunca o deixou. É há 31 anos diretor do Brazilian-American Cultural Institute de Washington (órgão ligado ao Itamaraty), e é considerado a maior autoridade em arte brasileira nos Estados Unidos. É consultor da Biblioteca do Congresso americano e professor na Universidade da Filadélfia. É Ph.D. em Estética pela Universidade de Viena. Mas é, antes de tudo, um passional a serviço da arte popular - e não só nacional. Sua próxima empreitada, a convite de Jacó Guinsburg, da Editora Perspectiva, está em curso. Trata-se de um levantamento dos aspectos estéticos da arte asiática. Neistein está com dificuldades com alguns dos países escolhidos. Por exemplo: embora fale mandarim, não domina o chinês clássico, o que o obriga a usar traduções em francês, alemão, italiano, inglês, espanhol - cinco dos nove idiomas que fala fluentemente. Vivendo em Washington, numa casa de três andares, Neistein divide seu espaço doméstico com uma bela coleção de arte colonial espanhola, amealhada durante toda sua vida. Algumas pinturas chegam a ocupar uma parede inteira. Do altiplano boliviano, por exemplo, ele mostra quadros de arte sacra de impressionante vigor e originalidade, como a assunção de São José - entre a vida e a morte, o santo espera uma sopa preparada pela Virgem, enquanto os anjos preparam o caminho ao Paraíso. Nas cores berrantes e nas faces indígenas da cultura sacra na América do Sul (de origem hispânica), está a marca da originalidade aplicada à tradição européia. No Brasil, essa marca ficou definida pela cultura negra. "Aqui, os senhores achavam que as artes eram coisas para escravos, e é por isso que a maior parte dos mestres eram negros ou mulatos", explica Neistein. Arte votiva - Sua visão da arte brasileira é abrangente e completa, passando da análise das obras de contemporâneos como Nelson Leirner e Marcello Nitsche à arte naïf. "A tradição da pintura ingênua no Brasil é muito nova, se não levarmos em conta as pinturas votivas, fruto da devoção religiosa popular, da qual o Brasil registra exemplares significativos dos séculos 18 e 19 - mas na forma como a vemos hoje, a pintura dos primitivos brasileiros apareceu na década de 50", escreve ele, num de seus mais celebrados ensaios, "Feitura das Artes" (Editora Perspectiva, 1975). José Neistein nasceu e cresceu no centro de São Paulo, nas imediações da Pinacoteca do Estado. Acostumou-se a visitar aquelas instituições da região ainda criança, como o Museu de Arte Sacra e a antiga Estação Sorocabana, hoje transformada nessa que ele considera uma das mais impressionantes salas de concerto do mundo, a Sala São Paulo. Muito cedo também passou a colecionar obras de arte, mantendo razoável acervo pessoal e também enriquecendo o patrimônio do instituto que dirige. Na parede da sala de seu escritório, na Wisconsin Avenue, 4719, em Washington, está dependurada uma obra rara de Guignard: um quadro que é também um mapa, na qual o pintor ilustra todas as igrejas de Ouro Preto. No início do ano de 1970, Neistein foi para os Estados Unidos, após ter vivido alguns anos na Europa. Tornou-se uma autoridade de referência em arte brasileira na capital norte-americana, mas nunca perdeu a forma equilibrada e criticamente distanciada de enxergar o "aqui" e o "lá". Ele conta um caso de infância para ilustrar o que considera a diferença fundamental entre o Brasil e os Estados Unidos. Conta que jogava futebol no colégio, em São Paulo, quando a bola escapuliu para fora do muro. Ninguém se habilitava a buscá-la. Até que um dos seus amigos ordenou a outro: "Você aí, japonês, busca a bola!" O nissei voltou-se e olhou com ira para o mandante, e não titubeou: "Eu sou tão brasileiro quanto você!", disse. "Essa é a diferença", teoriza Neistein. "Nos Estados Unidos, você pergunta para alguém de onde é e ele diz: sou irlandês, embora sua família viva nos Estados Unidos há três gerações." Segundo ele, o pequeno nissei era filho de japoneses, nascidos efetivamente no Japão, considerava que aqui era sua terra. A integração é real no Brasil, a seu ver. Mas não se iludam: Neistein é um homem do mundo, não denuncia nenhum ranço xenófobo. É extremamente crítico em relação à arte, não só do Brasil. Ele acusou etnocentrismo nos curadores da exposição "Body and Soul", em curso no Museu Guggenheim, por considerar que deram mais importância à visão estrangeira sobre o Brasil do que à leitura brasileira do próprio País - privilegiaram Frans Post e Albert Eckhout em detrimento de Almeida Júnior, por exemplo. Neistein chegou a colaborar, a convite de Sábato Magaldi e Décio Almeida Prado, com o antigo Suplemento Cultural do jornal "O Estado de S. Paulo". Como curador nos Estados Unidos foi o artífice da primeira exposição de Emanuel Araújo naquele País, quando o baiano ainda estava se iniciando nas artes - hoje é o celebrado agitador cultural que transformou a Pinacoteca de São Paulo num dos mais importantes museus da América Latina. "Da atmosfera discreta, quase ilustrativa, de sua etapa inicial, à pureza de suas gravuras monumentais de hoje, o caminho por ele percorrido tem sido o da disciplina sem concessões, o do controle, da penetração e da inventividade", escreveu o crítico sobre o artista, nos anos 70. Foto - Ele aborda uma multiplicidade de temas, sempre com uma visão original. Da fotografia, por exemplo, diz que foi praticada no Brasil bem antes de Daguerre ter patenteado o processo, em 1840. E que a consciência artística da fotografia só surgiu em data recente. "Mas vários fotógrafos que viveram e trabalharam no Brasil no século passado atingiram qualidade artística muito alta, tanto no retrato como na fixação de aspectos da vida no País, sua terra, seus costumes", frisa. Neistein também tem grande curiosidade por arte antropológica, indígena e primitiva. Foi um dos primeiros a realizar uma ambiciosa exposição de arte indígena nos Estados Unidos, em 1978, quando promoveu uma mostra de arte Tucuna (habitantes da região amazônica, na área de confluência do Rio Solimões com o Rio Amazonas). Os índios Tucuna foram mencionados pela primeira vez em 1641 por Cristóval d´AcuÏa, e depois estudados por Von Martius, Rivet, Brinton, Tessmann e outros. A exposição teve como objetivo evidenciar uma cultura que, àquela altura, estava em vias de desaparecimento. Ele não só evidenciou sua arte "clássica", por assim dizer, como revelou que, em décadas recentes, a arte Tucuna foi influenciada pelos missionários, com os artesãos passando a fazer suas pinturas sobre pedaços irregulares de tecido de casca de árvore, o tururi.

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