Crítica: Agilidade e delicadeza dão rumo à direção de 'Marlene Dietrich'

Epetáculo não pretende aguçar melodramaticamente um enigma humano, nem desvendá-lo

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Por Jefferson Del Rios - O Estado de S.Paulo
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Marlene Dietrich é uma façanha de Sylvia Bandeira que representa com altivez e classe a atriz original. O subtítulo "as pernas do século" foi um slogan do filme O Anjo Azul (1930), e só. Pernas ficaram celebres porque mostradas para multidões numa época em que os costumes não o permitiam. Era hábito de lugares suspeitos, mas no tenso mundo entre guerras a frase ganhou tom de verdade. Hoje sua aparição no filme é quase ingênua, assim como a tímida nudez da Hedy Lamarr em Êxtase (1933), produção austríaca está longe de ser incendiária. Marlene, porém, tinha carisma, o que faz diferença, e amanheceu diva. Hedy, realmente bela, não foi muito além do seu papel em Sansão de Dalila (1949). Pernas do século, se formos enveredar por esse caminho, foram as da francesa Mistinguett proibida de mostrá-las quando esteve no Rio, em 1923. Em 1919, elas estavam asseguradas por uma fortuna, lance de marketing que fez escola. Mistinguett só teve como rival Josephine Baker nas noites parisienses do Folies Bergère e do Moulin Rouge. Dos anos 40 em diante, reinaram Cyd Charisse, Rita Hayworth, Jane Russel em eletrizantes números de dança. Para não se falar, claro, em Marilyn Monroe com a saia levantada em O Pecado Mora ao Lado (1955). Na tela, Marlene é mais que pernas. É uma expressão melancólica e de defensiva ironia valorizada por um olhar enigmático. Atriz dramática que teve desempenhos convincentes quando ora parece vulnerável, ora provocadora, mas com fundo de medo, o que se nota em filmes como Mundana (título grosseiro em português para A Foreign Affair), de Billy Wilder. Vale a pena observá-la oscilando entre o erótico e a perplexidade quando se descobre frágil numa engrenagens de espionagem e guerra. Ou seu rosto lavado em Mulher Perversa, (Martin Roumagnac), direção de Georges Lacombe (1946). O crítico e dramaturgo inglês Kenneth Tynan acertou ao resumir sua persona: "Era tristeza que Dietrich comunicava. Seus modos são masculinos e a masculinidade de Dietrich atrai as mulheres e sua sexualidade, os homens." Essa esfinge de celuloide interessou Sylvia Bandeira, o dramaturgo Aimar Labaki e o diretor William Pereira. A química se fez a partir de um acaso: no musical Rádio Nacional, Sylvia Bandeira cantou Lili Marlene, marca registrada de Dietrich. Aos poucos, eles foram se envolvendo com a biografia de Marie Magdalene Dietrich (1901-1992). Alçada à fama pela audácia do diretor Josef von Sternberg ao fazer Anjo Azul, a artista alemã se naturalizou americana ao combater o nazismo e entrou para o panteão das estrelas misteriosas (Garbo é a referência óbvia, mas há Louise Brooks e, de certo modo, Gene Tierney do clássico Laura). O texto tem agilidade embora padeça de certo didatismo e a direção é intimista e afetuosa, à exceção do início, quando o jovem que presta um serviço à estrela representa clichê de TV. Não é crível esse comportamento. Quem entrava no apartamento-mansão da atriz na luxuosíssima avenue Foch, Paris, sabia, sim, onde e com quem estava. Em seguida, felizmente, a representação acerta o rumo com delicadeza. Sylvia tem carga emocional para o papel. Os desafiadores papéis dos que gravitam em torno dessa figura excepcional estão assegurados com força por José Mauro Brant (depois do começo) Marciah Luna Cabral e Silvio Ferrari. Todos cantam acompanhados por Roberto Bahal (piano e direção musical), Jefferson Martins (violoncelo) e Fernando Oliveira (clarineta). O espetáculo não pretende aguçar melodramaticamente um enigma humano. Nem desvendá-lo como o ator e diretor austríaco Maximilian Shell no documentário que impressiona porque só se ouve a voz de Marlene atrás de uma porta. A voz cansada corre em off enquanto assistimos às imagens da carreira gloriosa. O atual espetáculo fala, sobretudo, do encanto que artistas privilegiados despertam. Um dado pessoal: o crítico viu Marlene Dietrich ao vivo. Esteve a poucos metros dela em recital no Théâtre Espace Pierre Cardin, Paris. Aos 72 anos, o Anjo Azul sustentou sua majestade trajando um vestido prateado. Alguém da plateia atirou rosas vermelhas aos seus pés. Ela sorriu com a expressão que o mesmo Kenneth Tynan notara anos atrás: parecia espantada por estar lá, a cada noite, um assombro. Crítica: Jefferson Del Rios

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