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Cristovão Tezza mistura personagem com trajetória do País em novo livro

'O Professor' é o primeiro romance do autor depois de 'O Filho Eterno', de 2007

Foto do author Ubiratan Brasil
Por Ubiratan Brasil
Atualização:

A quantidade de prêmios conquistados com O Filho Eterno (2007) tornou Cristovão Tezza uma referência na literatura nacional. E, se para alguns a notoriedade poderia resultar em barreira criativa, para o escritor catarinense parece ter sido um impulso, a julgar por O Professor, seu mais recente romance depois de quatro anos sem publicar, que a Record lança neste fim de semana.

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Trata-se de um texto proustiano, que narra o fluxo de memória de um filólogo, Heliseu, que, aos 71 anos, prepara-se para receber uma homenagem da universidade onde sempre trabalhou. Enquanto pensa no discurso de agradecimento, ele é assombrado por lembranças nem sempre felizes, desde os casamentos com Mônica e Therèze até o conturbado relacionamento com o filho homossexual. Dono de uma prosa refinada e precisa, Tezza vai participar do 7º Festival da Mantiqueira, entre 4 e 6 de abril, em São Francisco Xavier. Antes, respondeu por e-mail, pois está na China participando de um evento literário, as seguintes questões.

Como foi o trabalho de uma escrita tão refinada?

Sinto que minha linguagem literária foi amadurecendo em direção a um estilo muito pessoal, marcado principalmente por um narrador “dobrado”, que, ao mesmo tempo, está na terceira e na primeira pessoas; sutilmente a frase passa de um ângulo a outro, aqui e ali. E um reflete o outro e sobre o outro – acho que a nossa cabeça funciona assim, e tenho uma certa obsessão pelos nossos modos de apreensão da realidade.

E, na estrutura do livro, O Professor tentou combinar um eixo realista, que dá um centro estável à narração, ao caos da memória, mas um caos artificial, organizado quase que em azulejos, pelo narrador. Tudo isso digo agora, mas na verdade escrevi este romance pela intuição e pelo faro. Ele foi avançando até chegar ao fim, sem nenhum esquema prévio além de uma direção – o momento de o professor sair de casa para receber sua homenagem.

É sempre um processo vago o autor avaliar a própria obra, mas eu acho que, depois de meus livros dos anos 80 e 90 (como Trapo, Juliano Pavollini ou Uma Noite em Curitiba), que me garantiram alguma segurança romanesca, fui dando uma guinada reflexiva – a idade pesou, talvez. Breve Espaço, de 1998, começou este processo. Em seguida, O Fotógrafo, que é inteiro uma invasão de intimidades. Enfim, O Filho Eterno, uma autoinvestigação romanesca. Um Erro Emocional foi uma pequena sonata, quase um exercício, mas que me abriu muitos caminhos. De certa forma, me preparou para escrever O Professor.

O fluxo da memória preenche os espaços vazios. Como foi montar esse puzzle perturbador?

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Pura intuição. Sempre condenei a ideia de uma linguagem que fala sozinha, a metafísica que dominou parte das teorias literárias dos anos 1970 e 80, mas, às vezes, sinto que a linguagem em mim ganhou a parada, vivendo uma estranha autonomia. Basta uma primeira frase no papel, e parece que já não tenho liberdade para escolher a próxima.

Eu me senti um pouco malabarista ao escrever este livro – ao mesmo tempo, precisava manter sempre aceso o eixo narrativo estável, o tempo real da manhã do professor, e levá-lo a sério no pacto com o leitor; e, neste processo, ia encaixando pedaços da memória, do tempo passado, do tempo presente e da prospecção do futuro, aquilo que nos move adiante, numa lógica aparentemente caótica, mas que obedece a elos sutis entre um momento e outro.

Uma das tarefas da literatura é pôr alguma ordem no caos. Uma tarefa ingrata, mas sem este impulso não se escreve. O interessante neste fluxo da memória é que ele faz com que o leitor invada esse ambiente e seja por ele invadido, deixando-se levar por sua instabilidade.

Eu prezo enormemente a empatia literária. Todo livro é em boa parte uma conversa com o leitor, e uma parcela do olhar crítico na minha geração entendeu que esta empatia necessariamente degrada o texto. Foi a empatia que me fez leitor e escritor. Tenho uma imensa dívida com os grandes contadores de história, o envolvimento emocional que põe à prova hipóteses da existência, que é o que toda boa ficção faz. É preciso enredar o leitor, mas não como um mero truque narrativo ou repetição de fórmulas; o melhor de tudo aparece quando o leitor sente que o narrador também está enredado na teia em que se meteu ao começar seu livro, que ele também tem mais perguntas que respostas. Puxar o leitor reflexivamente para dentro de uma situação romanesca é uma comunhão maravilhosa.

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É inevitável a lembrança do mar proustiano da memória e da reflexão – seja ao mostrar como a imperfeição da vida (e do tempo, que passa e destrói) é corrigida pela arte, seja ao provar que a matéria factual pode ser, no máximo, ponto de partida para a sua transfiguração em arte.

O ato de escrever literatura é um gesto arriscado e sem volta, quando realmente mergulhamos nele. Em pouco tempo, escrever deixa de ser uma atividade externa neutra, e o livro apenas um objeto que compomos; mexer com a linguagem acaba por modificar os eixos, as referências, os modelos e as verdades da nossa própria cabeça. Isto é, escrever passa a ser parte integrante e motivadora da vida, e não resultado dela. Súbito aparecem muros intransponíveis de sentido; a linguagem parece terrivelmente incompleta para dar conta do que queremos. E, no entanto, é o que temos. Assim, me agrada esta imagem da “correção” da vida pela arte, que seria o “TOC” de todo escritor, o transtorno obsessivo compulsivo de dar ordem ao caos. A matéria factual é, de fato, apenas o ponto de partida. Mas este “apenas” é imenso, ameaçador, incontornável.

A área da filologia é simbólica neste sentido, até por fazer do arcaico, do antigo, o seu objeto de estudo. Mas é claro que isso não é determinante no livro – são as situações afetivas, amorosas e emocionais dele que estão no centro do romance. E, como milhões e milhões de outros brasileiros, ele simplesmente não foi um ativista.

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Homens antigos como Heliseu estão fadados à extinção no mundo da internet?

Eu não diria isso, pelo menos frisando uma relação mecânica entre o avanço tecnológico que bagunçou o modo de vida e de produção de riqueza da vida contemporânea com o fim de um comportamento cultural ou visão de mundo. Seria otimismo demais.

Heliseu é um conservador problemático, uma cabeça dos anos 1950, que se refugiou no estudo da linguagem, e que viveu, ou revive no romance, uma imensa dificuldade de transformação emocional diante das mudanças práticas de sua vida. A personagem Therèse, ao entrar em cena, como que desmonta todos seus pressupostos existenciais, a paixão que atropela a ciência.

Heliseu é um homem que, como milhões de pessoas, não conseguiu jamais sair da casca e dos limites de sua própria formação, mas não sei se é exatamente esta a questão central do livro.

Sobre a eventual extinção de Heliseu, é bom lembrar que a espantosa modernidade em que a internet vem nos jogando em muitos aspectos tem revelado, paradoxalmente, um Brasil medonhamente arcaico, violento e conservador – basta ler um blog de comentários qualquer.

Serviço:
O PROFESSOR
Autor: Cristovão Tezza
Editora: Record (240 págs., R$ 32)

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