Crise do crescimento e o mal do mundo

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Por Crítica: Luiz Zanin Oricchio
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BOMHá dois tipos de público para filmes eventos, como é o caso da franquia Harry Potter: os devotos e os comuns. Os primeiros sabem tudo da série, leram os livros, dominam a terminologia, conversam entre si, formam grupos. Os outros, não fazendo parte da seita, vão ao cinema em busca de um bom filme; querem somente se divertir, porque ninguém há de achar que vai fazer um pós-doutorado em humanidades ou mitologia ao assistir aos derivados dos livros de J.K. Rowling. Aos primeiros, pouco se pode dizer, porque já estão imersos no universo protegido e reconfortante da história em série, uma espécie de líquido amniótico ficcional. Nenhum problema. Todos nós temos o nosso - é como um porto seguro psíquico, que nos protege de maneira um tanto precária do mundo real e da ação do tempo. No caso de Rowling, e seus filhotes audiovisuais, essa tela de proteção é formada pelo tecido ligeiro costurado pelas etapas da chamada "jornada do herói", esquema que sempre rende dividendos. Aos fãs, basta, portanto, deixar-se levar por caminhos um dia já trilhados por Guerra nas Estrelas e O Senhor dos Anéis. A versão contemporânea dessa estrutura que, dizem, está inscrita no inconsciente da espécie humana tem de comportar outros ingredientes. E aqui a segunda parcela do público, aquela que não aderiu por antecipação, precisa ser conquistada. Sob a direção de David Yates, a trajetória de Harry Potter adquire um tom sombrio, coerente com o processo de amadurecimento dos protagonistas e o enfrentamento das contingências da vida (e da morte). Mas é preciso também ganhar pontos naquilo que se espera de um bom blockbuster, e assim haverá perseguições aéreas, ameaças de seres extraordinários (o melhor de todos é uma serpente gigantesca), lutas. Ação, numa palavra. Tudo isso vem embalado numa atmosfera pesada, registrada em tons fotográficos ameaçadores. A forma escolhida (fotografia, música, visual) remete ao amadurecimento da trinca de heróis, uma angústia que corresponde ao preço a pagar pela perda da inocência. Por outro lado, há um mundo externo ameaçador, cuja perturbação maior se expressa pela busca do poder e pela presença da morte. A tentação da leitura política de Harry Potter é sempre grande, ainda mais se lembrarmos de como foi feita em relação a outros produtos da indústria cultural. Mas também quem disser que a encenação da complexidade do mundo (e da vida) no fundo é simplista não estará errado. É um recurso ao mito, como forma de tocar o nosso inconsciente contemporâneo, mas usado com considerável polimento das arestas incômodas e trágicas da nossa condição. Afinal, a mecânica do cinema-pipoca pede que a complexidade, se tiver de ser enunciada, seja negada em seguida. A parte obscura está sempre do lado de fora e, na eventualidade de se encontrar no interior do herói, poderá ser extirpada, como um tumor. Essa delimitação rígida de luz e trevas faz toda a diferença, para menos. Mas não é mau filme.

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