Crise de vocação dá ideia a projeto

Em O Palhaço, Selton Mello exorciza dúvidas sobre a profissão de ator

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Foto do author Luiz Zanin Oricchio
Por Luiz Zanin Oricchio
Atualização:

O repouso do palhaço. Ao contrário de Mastroianni, Paulo não tem problema em esperar

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CAMPINAS

As filmagens acontecem a uns 40 quilômetros de Campinas. Vai-se por rodovia, mas é preciso enfrentar pelo menos uns 10 quilômetros de estrada de terra, bem prejudicada pela chuva. Sacolejando, chega-se ao sítio conhecido como Recanto do Caubói. Lugar bonito, cheio de animais, mas com algumas edificações decadentes, quase em ruínas. Um lugar ideal para filmar a chegada do Circo Esperança. É lá que será filmado o diálogo essencial entre Valdemar (Paulo José) e o dono da fazenda, interpretado por Jackson Antunes em participação especial.

Encontro Paulo José já caracterizado como um patriarca cigano. Chapéu, calças de terno, colete, cheio de anéis nos dedos e cordões de ouro em volta do pescoço. O calor é infernal. Paulo não se queixa. Anda com um ventiladorzinho que também borrifa gotículas de água e joga no rosto de tempos em tempos. "Alivia", diz. O diretor Selton Mello dá as boas-vindas ao set e combina de conversar mais tarde, durante o almoço. A parafernália montada é a de hábito na produção de um filme - dezenas de pessoas entre técnicos, atores, extras, fotógrafos e auxiliares. Um batalhão, que parece caótico à primeira vista, mas costuma funcionar como orquestra nos momentos decisivos.

A cena a ser rodada é fundamental para o desenvolvimento da trama. O circo chega à fazenda e Valdemar é recebido pelo dono, Jackson Antunes, que assiste à chegada da caravana de sua varanda, pinicando uma viola. Depois, os dois conversam em uma mesa do lado de fora da casa. O dono oferece uma cachaça a Valdemar, que recusa. Jackson começa a contar a sua história. Diz que foi se meter no negócio do algodão, e perdeu tudo. Ri. E emenda com a frase que dá sentido ao filme: "O gato bebe o leite, o rato rói o queijo, e eu... toco o meu negócio." Quer dizer, cada um faz o que sabe, aquilo para o que é talhado e está destinado a fazer. A cena é ensaiada diversas vezes, antes de ser rodada (afinal, na máquina, está uma preciosa película de 35 mm, um luxo em tempos de tecnologia digital). Selton exige o tom justo: "Quanto mais seco, sem enfeite, maior é o efeito das palavras." Uma, duas, dez vezes, até rodar.

É assim o cinema, feito de repetições. E de esperas para entrar em cena. Num intervalo, pergunto a Paulo José se cansa. "Nada, eu nem sinto." Lembro de uma frase e digo a ele: "O cinema é a arte de esperar." Ele ri e identifica a citação. "A frase é do Marcello Mastroianni, um tremendo gozador. Não tenho problema em esperar, trago um livro, e pronto." Além da espera, há a picotagem das cenas e das sequências. A cena acima está em ordem direta; é dessa maneira que o espectador vai vê-la na tela. Mas, de fato, foi construída de outro jeito. Primeiro, Antunes chega à mesa, onde já o espera Valdemar. Depois, é filmada a saída da mesa, quando o encontro acabou. As duas cenas são feitas de manhã e não contêm diálogos. Apenas à tarde, após o almoço, é que será rodada a parte com o diálogo. Montadas, as três cenas compõem a sequência completa. Talvez dure uns dois ou três minutos na tela. Consumiu um dia inteiro de trabalho.

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E por que a cena e a tal frase é tão importante? "Porque o projeto do filme parte de uma dúvida sobre a minha carreira de ator", conta Selton. "Eu estava em Londres, filmando Jean Charles, quando pintou essa sensação: eu não estava onde queria, fazendo o que queria; usei isso a favor do personagem, porque achava que ele teria a mesma sensação, mas a dúvida ficou."

Seria uma crise vocacional? De certa forma sim. E a forma de ficção que encontrou levou-o ao mundo do circo. Lá, o seu personagem, Benjamim, é quem enfrenta a crise de identidade e vocacional. E se mede com o pai, uma personalidade forte, autoritária. "O filme é também esse momento de passagem de uma geração para outra, sempre problemática." Em meio a esse ambiente tumultuado, a frase do fazendeiro reverbera ao longo da história, como um ensinamento simples, porém eficaz. Como o gato bebe o leite e o rato come o queijo, cada um de nós deve se dedicar àquilo que sabe fazer melhor e lhe dá prazer.

Em relação ao seu primeiro longa-metragem, o belo e soturno Feliz Natal, Selton diz que O Palhaço será um filme "mais aberto ao público, mais solar e para cima". Não se arrepende do tom do primeiro longa: "Fiz aquilo que queria, na ocasião." Mas agora o momento é outro. "Sem nenhuma presunção, sou uma pessoa conhecida pela imagem da televisão e do cinema: encontro as pessoas na rua e elas dizem que querem ver o meu trabalho; espero que este filme chegue a elas." As filmagens prosseguem até dia 13 de abril e, além de Campinas e Paulínia, serão realizadas em Ibitipoca, Minas Gerais, que receberá em breve a trupe do Circo Esperança. Que não tem esse nome à toa.

Diretores

DOMINGOS OLIVEIRA

TODAS AS MULHERES DO MUNDO

"Paulo é um príncipe. Um homem do Sul, com a dignidade dos pampas, com uma visão de mundo tão vasta quanto eles. Temos uma amizade baseada não na intimidade, não na identificação e sim na gravidade, no senso de humor com o qual encaramos o mistério da vida."

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CACÁ DIEGUES

DIAS MELHORES VIRÃO

"Ele é sábio sem ser arrogante; talentoso, sem ser exibicionista; inteligente, sem perder a noção dos sentimentos. Seu bom humor e placidez camuflam uma cabeça sempre atenta e rápida."

JORGE FURTADO

SANEAMENTO BÁSICO

"Espero fazer mais filmes com ele. É um grande amigo, extremamente generoso como ator e diretor. Um velho sábio, grande fonte de inspiração, um mestre."

SÉRGIO MACHADO

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QUINCAS BERRO D"ÁGUA

"Viram o filme na França, onde não o conheciam, e disseram: "Mas quem é esse cara? É um gênio do humor!"."

SELTON MELLO

O PALHAÇO

"Ele é um bicho de cinema. Não precisa muita coisa, não. O nada dele é muito preenchido. Você bota a câmera nele e é uma loucura o que acontece."

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