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Luzes da cidade

Crime e identidade

Minha família mora perto do local onde o médico Jaime Gold caiu, morto, esfaqueado na Lagoa, no Rio. Um parente meu passou, em sua corrida noturna, pelo médico sendo socorrido, logo após o crime.

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Por Lúcia Guimarães
Atualização:

Quando visito minha família no Rio, ativo reflexos que estão mais ou menos dormentes desde os anos 90, em Manhattan. Aqui, meus músculos não se contraem, defensivos, quando saio da portaria. Sou avessa ao automóvel e, apesar de o transporte público em Nova York estar aquém do que se espera de uma economia tão rica e desenvolvida, a liberdade de me mover em contato com o resto dos nova-iorquinos é uma conquista para uma carioca amedrontada. Ocupar a própria cidade é uma rotina cívica que a violência urbana distorce e transforma em privilégio.

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Na semana que passou, o maior trauma da minha vizinhança de Manhattan foi a morte de uma criança de dois anos, atingida por um tijolo que se soltou de um belo prédio construído em 1900, numa rua a quarteirões de distância. As idades da criança e da mulher que empurrava seu carrinho tornam a tragédia muito próxima. Tenho, de quando em quando, o privilégio de empurrar um carrinho com uma criança no meu bairro. Minha única preocupação é saber se ela está confortável e se vê o cachorro que vai encantá-la na calçada, não penso em tijolos caindo. 

Já na Lagoa, aprendi minha lição. Não basta me concentrar no tráfego intenso e me certificar de que todos os carros vão respeitar o sinal vermelho. Tenho que prestar atenção no possível motoqueiro que considera a calçada uma pista auxiliar, como o que tirou um raspão do carrinho e dos pés do bebê que eu empurrava, no ano passado. Tenho que prestar atenção nas crianças, não as que estão usando os balanços à beira da Lagoa, mas as que podem ter uma faca. Esta distopia em que se transformou a vida urbana da classe média alta no Rio não me leva a defender a redução da maioridade penal ou tuitar as barbaridades proferidas por internautas quando o menor acusado da morte do médico foi preso. A falsa escolha entre a compaixão pela história previsível do adolescente acusado e a defesa da segurança parece transformar alguns de meus conterrâneos em espectadores de um distante coliseu romano.

Não conheci o menino Eduardo de Jesus Ferreira, cujo crânio foi destroçado por uma bala de fuzil, durante uma operação policial no Rio. Não conheci o médico Jaime Gold, embora seria mais provável conhecê-lo do que conviver com Eduardo, porque não frequentei favelas nem a periferia do Rio. Protestei aqui, após a morte de Eduardo, contra a falta de indignação da elite cujos filhos têm mais chance de ser mortos por menores criminosos do que por policiais criminosos. Lamentei especialmente o silêncio negligente do prefeito carioca Eduardo Paes, o mesmo que, depois de se esconder convenientemente atrás do detalhe burocrático de que policiais no Alemão são controlados pelo governador, se apressou em dar uma entrevista ao Estado dizendo que não há nada de problema social no exemplo do adolescente, caso seja confirmada sua participação no crime. O recado de Paes foi claro: menor inocente morto na porta de casa por negligência criminosa não é problema meu. Médico morto possivelmente por menor criminoso é. De novo, a divisão oportunista da sociedade.

Mas as baixas expectativas que temos de um prefeito não são justificativa para resignação com o declínio para o inferno cotidiano de tiroteios, facadas, arrastões. À distância, chamou atenção a cobrança feita aos que se manifestaram na rua contra a morte do médico por não protestarem o bastante contra a morte de Eduardo e de outros anônimos da periferia. A noção de que, até a total vindicação de cada morte pouco noticiada de um carioca pobre, os alvos da violência na Zona Sul devem calar a boca em resignação virtuosa é, no mínimo, niilista.

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Não há projeto de cidade baseado em carros blindados e seguranças armados. Estas defesas, acessíveis a uma ínfima minoria, logo se revelam prisões. O próximo estágio é uma passagem só de ida para Miami, Nova York, Lisboa, Londres, como aconteceu durante a recessão da década de 90, em seguida facilitada pelo Plano Real. O êxodo arrasta não só os ricos, mas a classe média, como a educada contadora mineira que encontro em festas aqui servindo salgadinhos, melancólica com a distância e a erosão do status profissional, mas apegada a alguma segurança.

Há algo em comum entre os partidos que se opõem e se revezam no governo, no seu fracasso em encarar a segurança como um direito. Vamos esquecer os discursos polarizados e platitudes baratas sobre pobreza e o fato de que a violência explodiu junto com a melhoria de renda dos brasileiros. A indignação, não importa a classe, defere a solução para o governo quase como uma entidade desencarnada, além do nosso alcance. A identificação individual com Jaime Gold esfaqueado na Lagoa não é inimiga e sim aliada da indignação com a morte de Eduardo.

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