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Coluna semanal do historiador Leandro Karnal, com crônicas e textos sobre ética, religião, comportamento e atualidades

Opinião|Criar

Bons criadores combinam muito conhecimento sólido com ousadia e rebeldia

Atualização:

Todo manual profissional e todo curso de aperfeiçoamento têm como bordão a criatividade. O motivo é simples: as funções repetitivas e mecânicas estão, cada vez mais, a cargo de algoritmos e robôs. O trabalho físico tende a ser cada vez menos atrativo e mais mal pago. A pressão aumentou. Se alguém não tiver ideias, será obrigado a trabalhar para quem apresentá-las. O futuro demanda, mais do que nunca, gente criativa. Resta a dupla dúvida: o que é ser criativo e se podemos aumentar a capacidade de inventar?

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Vamos pegar um exemplo de gênio das novas ideias: William Shakespeare. Ninguém duvida do talento do escritor inglês. Curiosidade: das 37 peças que restaram, 36 tiveram seu enredo copiado, isso mesmo, transcrito de alguma outra fonte. A propósito, a única peça não extraída de outro autor pode ser As Alegres Comadres de Windsor e, talvez, apenas porque ainda não se encontrou quem a inventou antes do Bardo. Um dia surgirá um obscuro texto que permitirá afirmar: 100% da obra teatral do filho de Stratford tem origem em terceiros. Então, tomando o exemplo do autor inglês, criatividade não é a ideia extraordinária surgida do nada (out of the blue, como se diria na terra da rainha), porém uma capacidade de recriar partes parcialmente concebidas por outra pessoa.

O documentário A Mente Criativa (Netflix) trata da habilidade humana de dar respostas mais complexas do que aquelas dos animais. Nosso córtex pré-frontal permite um maior distanciamento entre estímulo e resposta (input e output). Assim, diante de percepções variadas, somos reativos de formas muito distintas. Há um drama prático. Tendo em média só 1,5 kg, o cérebro humano demanda 20% de toda a energia do corpo. Como máquina eficaz, ele tende a repetir caminhos para poupar força. O documentário indica que, para sair da repetição e entrar na zona criativa, devo forçar essa “tendência” e buscar soluções e caminhos menos fáceis.

A criatividade não é, de fato, um dom natural que teria sido dado a alguns. Ela implica alguns fatos como atenção, estímulo, superação do medo de errar, informações variadas, práticas e aprendizado, especialmente com equívocos passados. Ela também não dispensa o caminho técnico e o aprofundamento na área de algum saber.

Leonardo da Vinci tentou misturar antimônio em algumas tintas para obter mais brilho. Foi um desastre. Há mais exemplos. A inovação que o mestre fez na pintura da Última Ceia em Milão (evitando a tradição usual do afresco) condenou a obra a um desgaste precoce. Os erros de Leonardo foram um ônus que suas experimentações despertaram. O resultado da sua coragem chama-se Leonardo da Vinci.

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Algo bem além do comum e abaixo do inviável parece ser uma boa fórmula inicial. Ousadia sem insanidade, capacidade de quebrar barreiras pessoais, experimentação, busca de conhecimentos novos em áreas distintas e sólida formação: são ingredientes que podem ajudar na constituição de um caminho criativo.

A necessidade é a mãe da invenção. Precisamos de um problema para elaborar uma resposta nova. Domínio intelectual é a capacidade de um amplo repertório que eu identifico e reproduzo. Inovar é a faculdade de dar uma resposta além dos dados disponíveis na erudição. Repertório é a capacidade de identificar cada pedra (nome, origem geológica, fraturas e intrusões, propriedades). Ela representa o saber acumulado e organizado de milhares de pessoas antes de mim. Erudição é fundamental, porém não pode ser confundida com inteligência ou criatividade. Criatividade demanda, além do mais, reorganizar as pedras, dar sentido, repensar a possibilidade e, tendo conhecido muitas respostas anteriores sobre o uso das rochas, pensar em uma nova resposta a partir das soluções dadas. Nada é criado como absolutamente novo e pouco pode ser transformado sem saber o caminho feito até ali.

Um pequeno itinerário para estimular a sua criatividade, ou dos seus filhos/alunos, ou do seu ambiente de trabalho passaria por cinco conselhos gerais que podem ser ampliados ao infinito. 1) Realizar atividades de uma forma distinta do usual, buscando novas soluções. 2) Desafiar-se com um conhecimento novo ou um setor do saber que até então era evitado (música? matemática? dança?). 3) Pensar as coisas tradicionais combinadas em novas funções. 4) Aceitar o erro como o maior professor possível. 5) Conhecer a fundo alguns dados para pensar sua estrutura. Superficialidade é inimiga da criatividade.

Alguém poderá dizer: as ideias são boas, mas eu preciso de um roteiro mais pormenorizado com exemplos concretos para implementá-las. Bem, é provável que você ainda esteja carente de impulso criativo. Permita-se pensar, reagrupar o que sugeri, rejeitar alguns itens ou todos e, acima de tudo, aplicar princípios gerais a sua área específica. Bulas precisas com quantidades exatas de componentes para remédios previsíveis são coisas eficazes, jamais criativas. Bons criadores combinam muito conhecimento sólido com ousadia e rebeldia. Apenas a recusa do mundo com birra autocentrada o torna um adolescente mal resolvido. Criatividade rejeita autoridade dogmática, porém jamais ignora o caminho que levou aquela questão até o ponto e o impasse em que ela se encontra.

Conhecer o “estado da arte” é saber muito sobre algo e, a partir disso, propor soluções distintas. Trata-se da clássica combinação de transpiração com inspiração. É preciso ter muita criatividade para o futuro, e alguma esperança. 

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Opinião por Leandro Karnal
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