Crianças aprendem fotografia em latas

O fotógrafo André François criou o projeto Photo da Lata para ensinar às crianças as técnicas básicas da fotografia, usando uma lata de tinta em vez de câmeras de alto custo

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Por Agencia Estado
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A imagem é universal, capaz de traduzir um sentimento em qualquer canto do planeta. Foi partindo desse princípio que o fotógrafo André François criou o projeto Photo da Lata. O objetivo é simples: ensinar às crianças as técnicas básicas da fotografia, usando uma lata de tinta em vez de câmeras de alto custo. Mas por trás dessa meta residem desejos mais subjetivos, como o de fazer com que a nova geração desenvolva uma percepção diferente e senso crítico sobre a própria realidade. Para tanto, ele criou a Organização da Sociedade Civil de Interesse Público (Oscip) ImageMagica, que já conta com uma equipe de 40 pessoas, entre fotógrafos, geólogos, educadores, pedagogos e estudantes, que realizam trabalho voluntário. Tudo começou há seis anos, quando François fazia fotos para um livro em São Thomé das Letras, no sul de Minas Gerais, e notou o interesse das crianças pela fotografia. "Havia curiosidade pelos equipamentos, elas queriam mexer em tudo", lembra ele. Depois de emprestar uma câmera automática a dois meninos, ficou surpreso com as imagens que trouxeram. "Eram fotos maravilhosas. Eles perceberam coisas novas através das imagens." A partir daí, ele instalou em uma escola local um curso de fotografia, mas como estava em uma comunidade carente, a solução foi usar latas de tinta como câmeras, a chamada técnica de pinhole. Só é preciso ter um pouco mais de paciência do que com máquinas convencionais. Um pequeno orifício é feito na lata e coberto com cartolina preta, e o interior é revestido com papel fotográfico. Para se captar imagens, basta tirar a cartolina e deixar a luz entrar por alguns segundos. "É interessante ver como as crianças acabam tratando as latas com carinho, como novas aliadas", observa. Convencido do poder das imagens como agentes sociais, o ex-fotógrafo de publicidade e documentários decidiu dedicar-se a um projeto de grande porte, estendendo a experiência ao maior número possível de escolas de São Paulo, do Brasil e do restante do universo, tal qual um missionário da fotografia. Batizado de Expedição, o projeto da ImageMagica é viajar em um ônibus transformado em laboratório itinerante. O equipado veículo tem acomodações para seis pessoas, uma pequena biblioteca, cozinha, computador, pode gerar energia para três dias e possui uma câmera escura com um pequeno orifício que pode captar imagens, assim como as latas. Nele, uma equipe de seis pessoas percorreria as principais regiões brasileiras em um ano, passando um mês em cada cidade, onde ensinariam crianças de nove a 17 anos a fotografarem com as latas e refletirem sobre as imagens. Foram selecionados municípios pequenos dos cinco principais ecossistemas nacionais, exatamente por conservarem as características naturais mais intactas do que as grandes metrópoles. A partir das imagens capturadas pelas crianças, seriam feitos cartões-postais, um livro e mostras fotográficas. E um intercâmbio entre as diferentes regiões seria possível. "Um menino da Paraíba poderia se encantar com imagens da fartura de água em Bonito, no Mato Grosso", acredita François. Para dar continuidade às atividades, seriam deixados kits-laboratório e capacitados professores das escolas locais. Em vez de usar o caro e delicado ampliador no laboratório, a equipe do ImageMagica desenvolveu um similar feito também com uma lata de tinta, que tem lâmpada comum e papel celofane vermelho fazendo as vezes de filtro, material facilmente substituído. E a organização também se dispõe a enviar papel fotográfico e os produtos químicos necessários para a revelação.A estimativa é de que 30 mil alunos tenham completado o curso e 400 educadores tenham sido treinados depois de um ano. Em um segundo momento, a Expedição alcançaria o restante do mundo, em um projeto com duração de quatro anos, percorrendo 28 países em todos os continentes, em um percurso de 170 mil quilômetros, equivalente a cinco voltas em torno do planeta. Por enquanto, a ImageMagica tem participado de congressos e seminários e, sempre que possível, realiza oficinas nas escolas paulistanas. Uma das últimas ocorreu em Perus, bairro periférico da zona oeste de São Paulo, com 25 alunos e três educadores da escola municipal Cândido Portinari. Depois de reveladas as fotos da lata, os participantes refletiram sobre seu significado. "A imagem construída de forma mais escura retrata para mim o abandono", observou o aluno da 7.ª série, de 13 anos, Jackson Ferreira Pereira. "Aprendi que posso fotografar com objetivos específicos." Já seu colega Maurício Mathias Júnior, de 13 anos, comentou que os fios elétricos escondidos diminuem a poluição visual da cidade. Vontade da parte de outras escolas em aderir às atividades da ImageMagica é o que não falta: François coleciona cerca de 700 pedidos de diretorias que as querem. Por enquanto, o empecilho é a verba. No ano que vem, pelo menos seis escolas terão oficinas de fotografia da lata, contemplando ao todo 2.160 alunos. Isso será possível porque a Prefeitura de São Paulo aprovou em agosto a utilização de recursos do Fundo da Criança e do Adolescente para o projeto. É com entusiasmo que François comenta: "A fotografia poderia ser uma ferramenta de análise para todas as disciplinas da escola. A partir de uma imagem, um professor de geografia ou de português poderia suscitar discussões diferentes." Se o projeto começou com o idealismo solitário de François, hoje conta com o apoio pedagógico de entidades como o Instituto Paulo Freire e incentivos da Secretaria de Estado de Educação de São Paulo. O projeto também foi enquadrado na Lei de Incentivo à Cultura, a chamada Lei Rouanet. No entanto, os principais recursos ainda vêm de seu idealizador, que busca patrocinadores para colocar a Expedição na estrada e instalar mais oficinas nas escolas. Como Oscip, o projeto garante dedução de 2% no Imposto de Renda dos patrocinadores. Filho de franceses, François encontrou na fotografia um canal de expressão ideal. Tentou até pintar dos 16 aos 17 anos, mas sentia falta de realismo. Com fé na magia da imagem, ele acredita nela como uma ferramenta para aguçar a percepção de crianças de todo o universo e, quem sabe, criar uma ponte de comunicação entre os povos. No material da ImageMagica, a frase mais lida é de sua autoria. Diz que perceber o mundo em que se vive é o primeiro passo para modificá-lo. A ImageMagica fica na Alameda dos Uapés, 505 (tel. 577-9902). Pode-se também entrar em contato por meio do site www.imagemagica.com.br.

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