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Psiquiatria e sociedade

Opinião|Corrida para fora

Nunca consegui, mas a verdade é que nunca perdi o desejo de construir um terrário

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Quem lê essa coluna numa tela possivelmente não conheceu o Tesouro da Juventude, enciclopédia lançada na primeira metade do século 20 e reeditada no final da década de 1960. Foi essa edição, de capa dura azul acinzentada, que descobri quando ela já era uma relíquia – quando a pandemia passar, quem tiver curiosidade pode consultar a mesma cópia que eu tinha na Biblioteca Álvaro Guerra, no bairro de Pinheiros em São Paulo, para onde a doei recentemente. Animais e plantas, Contos, Poemas, O Livro dos Porquês, eram diversas as seções que traziam informações destinadas a jovens e crianças. Lembro-me especialmente da seção CoisasQue Podemos Fazer, uma espécie de Manual do Mundo da época. Bolhas de sabão, barquinhos com cascas de diversas frutas, teatro de sombras, vários daqueles projetos viriam a calhar para esses tempos de quarentena. Um dos que mais me fascinava era o terrário. Numa caixa de vidro, mais alta que profunda, terra e formigas deveriam ser introduzidos e ali estabeleceriam sua colônia, permitindo que adultos e crianças embevecidos observassem os insetos enquanto abriam seus túneis na construção de um novo formigueiro. Nunca consegui executar o projeto, eram muitos os obstáculos: desde encontrar uma caixa adequada até conseguir enfiar um formigueiro inteiro – com rainha e tudo, como descobri ser necessário – dentro dela, a tarefa parecia destinada a permanecer confinada nas páginas da enciclopédia. Mas a verdade é que nunca perdi o desejo de construir um terrário. Eis que, trinta anos depois, o sonho se tornou realidade. Refugiado parcialmente no interior de São Paulo durante a quarentena, deparei-me com um grande formigueiro enquanto caminhava com meus filhos. Munidos de uma pá de lixo e luvas de jardinagem, as crianças e eu encaramos o desafio e transplantamos toda a terra que pudemos para uma caixa de acrílico, que fora maquete de oceano num trabalho de escola. Sucesso. Dias depois as incansáveis trabalhadoras haviam transformado aquela caixa num novo lar, completamente funcional. Por várias vezes minha esposa me flagrou contemplando-as em seu labor, como um aquarista observa seus peixes. Vez por outra eu abro a tampa, para as ver melhor e renovar seu ar. Nessas horas, o que se vê é um rebuliço naquela sociedade até então tão ordeira. As formigas parecem parar imediatamente o que estão fazendo, correndo em disparada, sem muita organização, em direção à abertura. Leitores mais versados em entomologia saberão explicar o que acontece no diminuto sistema nervoso delas: será que notam o ar, a luz, alguma discreta mudança nos aromas? Talvez cada uma fuja por um motivo: alimentos, exploração, reprodução. Não sei bem, mas, se não faço alguma coisa, o estrago grande. Penso nelas quando vejo o comportamento das pessoas ao menor sinal de flexibilização na quarentena. Seja em Londres ou em Copacabana, parece que, diante de qualquer fresta que prometa bafejar novos ares, as pessoas, como as formigas, esquecem a ordem e correm para a saída. Provavelmente, cada uma sai por um motivo: alimentos, exploração, reprodução. Não sei bem, mas temo que, se não fizermos alguma coisa, o estrago será grande. 

Opinião por Daniel Martins de Barros

Professor colaborador do Dep. de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da USP. Autor do livro 'Rir é Preciso'

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