Corpo e alma do Renascimento

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Por TEIXEIRA COELHO É CURADOR DO MASP
Atualização:

TEIXEIRA COELHOP oucas vezes o adjetivo monumental coube tão bem a uma obra de história da arte e da cultura quanto a este estudo de André Chastel sobre a Renascença. O livro foi publicado na França em 1959 e, escrevendo sobre ele uma resenha dois anos depois, outro notável historiador da arte, Pierre Francastel, observava que nos 70 anos anteriores, desde 1891, não aparecera tratado geral de mesmo peso sobre o mesmo tema. E talvez não tenha havido outro igual nos 53 anos seguintes a seu lançamento, i.e., até hoje. É provável que a dinâmica cultural da vida intelectual não mais permita essa proeza. Hoje, historiadores, críticos e intelectuais viajam o tempo todo para congressos, seminários, palestras, feiras do livro e festas literárias: não têm mais "tempo livre" para escrever grandes livros. Reservar um tempo para a reflexão e a produção é tarefa quase sobre-humana, hoje. É possível, assim, que outro Arte e Humanismo em Florença seja doravante inviável.Não só por falta de tempo um livro assim seria agora improvável: a ideia mesma de que seja possível abarcar num volume, por maior que seja, todo o espírito e o mecanismo de uma época mesmo curta como essa, de 1460 a 1550, não mais faz sentido. Não é mais cabível o projeto, por exemplo, de uma Estética como a que G. Lukács escreveu, em três volumes. A estética ficou complexa demais. Hoje, o que há são as estéticas. Pequenas estéticas avulsas.Não há mais como escrever livros assim e não há mais como ler livros assim. Este livro pede uma vida toda para ser lido. James Joyce dizia escrever livros que demandassem a vida toda de alguém para serem lidos. Ninguém mais dedica a vida toda a ler um livro: hoje, há muito mais vida fora dos livros do que antes. Só os fanáticos fundamentalistas ainda acreditam que é possível ler um só livro a vida toda.Portanto, não há como tratar desse livro em uma breve resenha. Se nem mesmo o título completo da edição original, Arte e Humanismo em Florença no Tempo de Lorenzo o Magnífico, coube na capa da edição brasileira - sinal e resumo do que anotei acima -, como escrever sobre esse tratado em poucos parágrafos? É viável relatar que o livro trata da cidade de Florença sob Lorenzo de Medici, e dos programas dos arquitetos à época, e do reino das imagens criadas, ou da noção de beleza em vigor, do papel das elites (como se costuma hoje dizer nesta época dos reducionismos demagógicos) e de três monstros sagrados: Rafael, Da Vinci e Michelangelo e sobre como determinaram o "gosto moderno". É viável, ainda, lembrar que o livro foi alegadamente escrito para provar a tese de que a idade de ouro de Florença sob Lorenzo de Medici não existiu e que imaginários desse tipo são apenas uma entranhada tendência humana para acreditar que houve uma Idade de Ouro e que ela ficou para trás - na Florença de 500 anos antes assim como Platão, o grande culpado de tudo e o grande iniciador de tudo, sempre defendeu que o melhor havia ficado para trás já em seu tempo... Seria também permitido registrar que, buscando provar que Florença, ao contrário do que se dizia, tinha "mais problemas do que certezas", Chastel acaba demonstrando exatamente o contrário - o que não deixa de ser normal: livros assim são maiores que seus autores e fogem do controle (como, aliás, defendia Platão: a arte é sempre maior do que os artistas que a fazem e interessa mais do que eles).Mas, dizer isso é pouco. O livro é sobre muita coisa: sobre uma sociedade de comerciantes ricos que pretendeu viver "animadamente" e buscou as balizas de uma humanidade "mais completa", orientada pelos "instintos nobres" sem deixar que esses escorraçassem os mais vitais (ou mais "baixos"). E é sobre como se buscou, num dado momento, uma convergência entre religião e vida moderna (ou entre religião e ciência ou, em todo caso, entre religião e reflexão filosófica). Tudo isso sem ocultar que Savonarola mandou queimar livros e pinturas de lindas mulheres nuas em plena Florença "pré-iluminista". Um vasto livro. Como todo grande livro, terá seus críticos que nele não verão tudo que o autor disse querer alcançar. Inevitável.Isso dito, por que ler hoje esse livro ricamente ilustrado, como se diz, em cuidada edição, se o leitor não for um historiador da arte e não se interessar pelas teorias sobre a autonomia das formas ou sua dependência das ideias gerais do momento?Cada um terá suas preferências. As minhas centram-se em três pontos. O primeiro deriva de notas soltas de minhas leituras de Georg Simmel - e são tão soltas, por falta de tempo, que não mais sei o que é meu e o que é de Simmel e receio sugerir que seja dele algo que ele jamais subscreveria. Mas eu o faço. Lendo Chastel sobre Rafael, Leonardo e Michelangelo, sobretudo Michelangelo - o último florentino, diz Chastel, ele que "encheu seus contemporâneos de incerteza e espanto", que embaraçou todo mundo e ultrapassou a medida comum - fica mais uma vez claro para mim que a vantagem imensa da arte sobre a filosofia (senão sobre a ciência) é que a arte se debruça a cada vez sobre um problema bem determinado: tal pessoa, tal paisagem, tal gesto a transpor para a arte. E partindo daí (e é possível que o que vem a seguir seja, isto sim, de Simmel), a arte nos faz desfrutar o universo como um presente, uma felicidade de algum modo merecida. Ou será - minha letra é neste ponto ilegível - uma felicidade imerecida? Teria Simmel escrito, em sua obra não menos grandiosa, que essa felicidade é imerecida e que mesmo assim nos é entregue pela arte? (E o que de mais prazeroso do que a felicidade imerecida?) Ou escreveu ele que essa felicidade é merecida e que só a arte pode torná-la acessível? Não importa. É o que chamo - isto é meu, não há como ser dele - de felicidade que vem do pensamento sólido da arte. E há poucas coisas na história da arte tão sólidas quanto a arte que se fez em Florença naquele período.Meu segundo ponto é, este sim, inteiramente de Simmel. Lendo Arte e Humanismo... fica claro que o estilo de vida, portanto a arte que dele deriva e ao mesmo tempo o constitui, está vinculado à (para não dizer que depende da) circulação do dinheiro, isto é, do mercado. E que essa circulação favorece a ascendência do espírito objetivo e objetificado (a cultura) sobre o espírito subjetivo ao mesmo tempo em que favorece também o desenvolvimento e a autonomia do espírito subjetivo. E fica claro, graças a Simmel, que o dinheiro, por interpor-se entre as coisas e os homens, permite a estes uma existência livre da dependência direta das coisas, uma liberdade sem a qual nossa subjetividade não alcançaria certos estágios de desenvolvimento. Chocante, não? Pelo menos aos olhos fundamentalistas que ainda querem se impor hoje sobre a cultura, por aqui...Esse segundo ponto está ligado à validade da ideia da "cidade criativa" como elemento instigador de uma política pública animada pela cultura e pela arte, por mais que Chastel diga que Florença não era lá essas coisas... Mas vou deixá-lo de lado por falta de espaço e passar ao meu terceiro ponto, que é um retorno a Chastel por meio da famosa resenha de Francastel: lendo Arte e Humanismo..., fica claro que o tal do "social", que hoje virou substantivo (em tudo demagógico, sem que ninguém se atreva a dizer que o rei está nu), e através dele o "histórico", só existe se antes existir o individual, e que sem criar as condições para o desenvolvimento do indivíduo, coisa que Florença fez, não há "social" que se sustente. Obviedade que neste país se pretende ignorar. Chocante outra vez, não? Mas, este país é resistente a choques...Haveria um quarto ponto: lendo Chastel, é impossível não ver o que o franco-grego Castoriadis chamou de maré de insignificância que avança sobre nós na política, no mecenato e, claro, também na arte... Mas isso pode ser fruto da crença de que houve um tempo melhor no passado, por isso nada direi a respeito.Um livro monumental é assim: nos vende uma passagem para um destino e nos abre portas para múltiplos universos insuspeitados.Um livro extraordinário é assim: vende passagem para um destino e,no fim, abre portas para múltiplos universos

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