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Cores da presença lusitana

Laços de Sangue, de José Sacchetta Mendes, analisa a imigração portuguesa

Por Elias Thomé Saliba
Atualização:

E m 1972, como parte das comemorações oficiais do sesquicentenário da independência nacional, aconteceu um jogo de futebol entre as seleções do Brasil e de Portugal. Foi apenas mais um jogo amistoso. Mas num país onde o futebol sempre funcionou como metáfora silenciosa de muitos acontecimentos, o resultado foi muito sugestivo: deu empate. Muito sugestivo, sobretudo por expressar os paradoxos de um relacionamento do Brasil com os seus antigos colonizadores que não encontra paralelo na história moderna do Ocidente. Claro que antes de 1822, o Brasil sempre se constituiu naquela intermitente rota de fuga preferida dos portugueses para fugir dos males ibéricos. Mas o evento paradigmático que marcaria para sempre as relações com Portugal foi quando a própria família real, para escapar da invasão napoleônica, atravessou o Atlântico e transferiu o estado monárquico inteiro para o Brasil. A partir daí as correntes migratórias portuguesas aumentaram num ritmo crescente, mas, curiosamente, foram pouco estudadas pelos historiadores, que se concentraram no estudo das (não menos importantes) correntes imigratórias italianas ou japonesas. Este descuido da historiografia já parece sintomático daquele mesmo paradoxo: os dois países pareciam tão próximos em muitos aspectos que a imigração nem sequer era considerada. Analisando em detalhes a imigração portuguesa para o Brasil no longo período entre 1822 e 1945, Laços de Sangue, do historiador José Sacchetta Mendes vem cobrir esta lacuna da historiografia brasileira. Fruto de extensas pesquisas em arquivos brasileiros, portugueses e em documentação diplomática norte-americana, o livro delineia, em perspectiva de longa duração, o paradoxo que marcou a imigração portuguesa no Brasil: enquanto a legislação e as diretrizes jurídico-políticas quase sempre favoreceram os portugueses em relação aos demais imigrantes, foram muitos os episódios de preconceitos e intolerâncias - quando não de violência explícita - em vários momentos da história brasileira. Sacchetta enfrenta com lucidez o cipoal jurídico que envolvia a definição do imigrante português. Começa em 1822, quando o processo da emancipação conduziu à outorga de nacionalidade brasileira a todos os portugueses aqui residentes. Já aí o português começou a entrar numa espécie de limbo jurídico: ganhou a peculiar condição de cidadão adotivo, pois de fato, nem sequer era considerado estrangeiro. Em 1889, saem as primeiras leis republicanas, com a "grande naturalização" de todos os estrangeiros aqui residentes, a qual acabava privilegiando, de fato, os portugueses. A legislação autoritária do regime varguista durante o Estado Novo (1937-1945) constitui uma espécie de intervalo nesta história de favorecimento jurídico da imigração portuguesa, porque, em 1945, a preferência explícita pelo imigrante português acabou, afinal, elevada ao patamar constitucional. Assentando-se no uso do idioma comum e em pressupostos de cultura e de raça, a legislação privilegiou o português em vários aspectos, de regras imigratórias a leis trabalhistas, de povoamento ou de naturalização. Tudo acompanhado de uma retórica que se apropriou tanto das ideologias racistas - as quais, durante o século 19, incluíam o imigrante luso no quadro ideal daquele "homem branco, cristão e latino" - quanto daquelas ideologias que, sobretudo durante as primeiras décadas do século 20, antecipando a política portuguesa nas ex-colônias africanas, assumiam a perspectiva de um benevolente luso-afro-tropicalismo. Em contraponto a esta história de favorecimento geral, o livro reconstitui também muitos episódios violentos de antilusitanismo que, em alguns casos, chegaram ao limite da violência física contra portugueses. A lusofobia exacerbou-se após a abdicação de D. Pedro I, em 1831, inaugurando um período marcado por revoltas contra os negociantes lusos nas principais capitais do País. Exemplo de episódio violento e pouco conhecido - já que a documentação foi destruída - foi a "Noite do Mata Bicudo", na província do Mato Grosso, em 1834, com a perseguição e o morticínio de dezenas de portugueses - jocosamente denominados bicudos, devidos ao uso costumeiro de chapéus com abas pontiagudas. O antilusitanismo também se disseminou nas décadas iniciais da República, já que, no fragor dos conflitos e ao sabor dos oportunismos da época, qualquer português era visto ou como monarquista potencial ou como representante do anarquismo internacionalista. Esta intolerância diminuiu quando Portugal virou uma República e o Brasil recebeu a visita, em 1922, de Antonio José da Silva, o primeiro presidente da República portuguesa a visitar nosso país no exercício do mandato. Emblemática desta aproximação foi ainda a festa popular que marcou o desembarque dos aviadores lusos Carlos Gago Coutinho e Artur Sacadura Cabral, depois da travessia aérea do Atlântico, no mesmo ano de 1922. É certo que a cultura modernista, na sua modalidade mais estridente da vanguarda voltou com tudo ao antilusitanismo, rejeitando o legado histórico da antiga metrópole como índice do obscurantismo e do atraso. Em síntese, na segunda metade do século 20, cessaram as crises de lusofobia e tudo acabou em empate, como naquele jogo amistoso. Permaneceram apenas velhos preconceitos, estigmas e indisposições que se cristalizaram nas difundidas anedotas de português. Mas esta já é uma outra história. ELIAS THOMÉ SALIBA É PROFESSOR DE TEORIA DA HISTÓRIA NA USP E AUTOR DE, ENTRE OUTROS, RAÍZES DO RISO (COMPANHIA DAS LETRAS)LAÇOS DE SANGUE - PRIVILÉGIOS E INTOLERÂNCIA À IMIGRAÇAO PORTUGUESA NO BRASILAutor: José Sacchetta MendesEditora: Edusp (384 págs., R$ 64)

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